O longo registo de uma performance

Diz o realizador, Miguel Gonçalves Mendes, que "Autografia" é menos um filme sobre a obra de Mário Cesariny, sobre a poesia e a pintura, do que sobre ele próprio, sobre a sua figura, a sua vida, a sua história. É verdade - mas não expulsa o resto, alguém como Cesariny (façamos aqui uma tangente ao chavão do "homem e a obra") transporta a obra no corpo e no espírito, e aqui, pelo menos (é o pequeno milagre do filme), ela faz-se matéria como se ninguém quisesse a coisa.

"Autografia" é um filme que satisfaz um pedido, um filme que "faz o favor de não dizer absolutamente nada", porque essa é uma lição para se tocar em coisas essenciais, e porque nessa atitude de "apagamento" fascinado "Autografia" cria um espaço que é totalmente preenchido por Cesariny, como se o filme fosse o longo registo de uma performance (e às vezes é-o, literalmente).

Cesariny como figura e fonte de fascínio - é o mais evidente motor de "Autografia". Se não parecer demasiado pretensioso, como "corpo" de fascínio, também, e é quase por lá que o filme começa, com aqueles planos de Cesariny à janela em que o enquadramento se cerra sobre a pele de um corpo envelhecido (e, apetece dizer, sabe-se lá porquê, "veterano"). O corpo e a voz de Cesariny, os olhos, o rosto: há uma relação física, quase magnética, entre a câmara e aquele homem. Impossível, portanto, que se alheie, que se afaste para muito longe. Quando o faz é para responder, com um voo de helicóptero sobre Lisboa, a um sonho de Cesariny, ou para o encontrar, depois de aparentemente o ter perdido, à varanda da sua casa, pequena cela para um homem que mais duma vez fala ao longo do filme, do "tecto baixo" e da "rua", e que em todo o caso "nunca escreveu um poema em casa".

Por outro lado, o despojamento quase amadorístico de "Autografia" cumpre bem a fuga à solenidade que caracteriza o "documentário cultural" sobre figuras do universo artístico e literário. Num filme sobre Cesariny essa fuga é justa (e como ele diz, "mataram a revolução surrealista quando a começaram a pôr em museus") e ajuda a que, mesmo naquilo que organicamente parece mais escusado (pequenas "performances" de Cesariny, ainda que ele próprio as pareça ter sugerido e "dirigido"), haja sempre energia suficiente: a energia daquele homem, daquele corpo e daquela voz, tudo somado, antídotos para qualquer ortodoxia.

Filmado como vida, e como sobrevivente (mesmo que, ou porque, "todos estejam mortos"), em consequência fixado no presente (nenhuma imagem de arquivo, por exemplo, para além das fotografias que, imaginamos, vagueiam pela casa de Cesariny), mas cheio de âncoras do passado, fantasmas e maravilhas, coisas bem resolvidas e mal resolvidas. A este propósito, uma das cenas mais impressionantes, por ser aquela em que algo acontece naquele momento e muito para além do filme, é o "confronto" entre Cesariny e a irmã, que desemboca na relação com o pai e ilumina, por assim cinefilicamente dizer, alguns "rosebuds". Como aliás há muitos, espalhados no filme, destapados mas nunca profanados.

O mais elogioso que se pode dizer de "Autografia" é que é menos um filme sobre a vida de Cesariny do que um filme que a integra e que a "aclama" (como no poema em que se fala de estar vivo na geleira).

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