Trinta Anos de Contestação




Após 29 anos de luta, em que se sucederam cortes de estradas e de linhas férreas, manifestações, greves de fome e boicotes eleitorais, a 1 de Julho de 2003 o projecto de criação do município de Canas de Senhorim foi votado favoravelmente na Assembleia da República (AR). A festa durou menos de um mês. A 31 de Julho do mesmo ano, o Presidente da República vetou o decreto-lei. A decisão de Sampaio agudizou a indignação do povo, que, liderado pelo Movimento de Restauração do Concelho de Canas de Senhorim (MRCCS), desenterrou os "machados de guerra". Dois dias depois de uma audiência com Sampaio, o presidente de junta de freguesia, Luís Pinheiro, realizou um comício para avisar que, daí em diante, a luta seria "total", prometendo "deitar abaixo" todos os que se atravessassem no caminho de um povo que, como descreve, "está a viver um massacre semelhante ao ocorrido em Timor".

O desejo de elevar Canas de Senhorim a concelho sempre esteve latente, mas intensificou-se a partir de 2 de agosto de 1982. Nesse dia, a população invadiu a estação dos correios e arrancou os carris da Linha da Beira Alta, entrando em confronto com as forças policiais. A memória e o orgulho colectivo não esquecem que a agora freguesia de Nelas foi concelho entre 1196 e 1852 e 1867 e 1868. Em 1997 foi criado o MRCCS. A partir daí a "luta" foi-se alternando entre o plano institucional e as manifestações de rua. Devido ao simbolismo da data, 2 de Agosto era apontado para feriado municipal do desejado concelho.

Às vezes aguerrida, quase sempre feroz - recordem-se os insultos ao Presidente da República e "ao outro tirano lá de cima", o presidente da Câmara Municipal de Nelas -, a contestação é, desde finais dos anos 90, encabeçada por Luís Pinheiro. Professor, antigo vereador na autarquia de Nelas, presidente da Junta da Freguesia de Canas e líder do MRCCS, Pinheiro assume-se como o catalisador da "revolta" de um povo "injustiçado" e "humilhado". Depois do veto presidencial, subiu ao palanque para ameaçar "dar umas lambadas" aos habitantes que não perfilham do desejo colectivo. Constantes são também as farpas lançadas contra comentadores que se manifestaram desfavoráveis à criação do concelho - Marcelo Rebelo de Sousa e Miguel Sousa Tavares. Mas não só. Também os repórteres que abordaram a questão foram alvo de violentas críticas. E ameaças. "A comunicação social mete-me nojo. Estou-me a marimbar para a comunicação social. Se estiverem mal, levam uma malha. Quando formos para a luta, esqueçam que eles lá estão. Estão nitidamente contra nós", disse, durante um comício do movimento.

Nuno Amaral/PÚBLICO







Problema da freguesia de Canas de Senhorim é um "caso político e não de polícia"

Foto
Canas de Senhorim vive mais um período da sua longa luta pela ascensão a concelho Paulo Novais/Lusa

O líder do Movimento de Restauração do Concelho de Canas de Senhorim afirmou hoje que o problema da freguesia "é um caso político e não um caso de polícia", em resposta ao comentário da Presidência da República sobre os confrontos de ontem na sequência de mais uma manifestação daquele movimento.

O assessor do Presidente da República, João Gabriel, afirmou ontem à noite que "as posições enunciadas pelo movimento constituem um desafio à democracia" e que as manifestações realizadas durante todo o dia em Canas de Senhorim constituem "apenas um caso de polícia".

Mas Luís Pinheiro afirma hoje, em resposta, que "o problema de Canas é um caso político e não um caso de polícia. E se houve algum atentado à democracia foi a força policial brutal que enviaram para Canas de Senhorim, só visível antes do 25 de Abril, e o facto de o Presidente da República estar a fugir ao diálogo. Nós só lhe pedimos isso, diálogo".

Luís Pinheiro criticou as declarações do assessor de Jorge Sampaio, afirmando que "[João Gabriel] não deve estar a par do que Jorge Sampaio se comprometeu com o movimento" e recordou que, após o veto da lei-quadro que permitiria criar novos municípios, no Verão passado, "o movimento soube esperar" até conseguir falar com o Presidente.

Segundo João Gabriel, nesse encontro Jorge Sampaio sublinhou que "a não criação do concelho de Canas de Senhorim não significa menor atenção aos problemas da população" e que a freguesia "tem o mesmo direito ao desenvolvimento do restante território nacional e a sua população deve ser tratada pelas autoridades locais e nacionais em condições de igualdade".

O líder do movimento contrapõe: "De facto ele [Jorge Sampaio] disse isso, mas ainda não se viu qualquer consequência. Mas foi mais longe, disse que a situação de Canas só poderia ser resolvida com a criação do concelho, até nos comparou à Bósnia, e garantiu que ia fazer os contactos necessários para resolver a situação".

Pinheiro lamentou que depois disso só tenha havido "silêncio", o que levou a população a voltar aos protestos, primeiro em Lisboa, e desde a semana passada em Canas de Senhorim.

Ontem registaram-se confrontos entre populares e militares da GNR, no decorrer de uma acção dos populares da freguesia que tinha como objectivo reivindicar uma audiência com o Presidente da República para discutir o tema da elevação da freguesia a concelho.

Os populares, concentrados desde as primeiras horas da manhã junto às instalações da Empresa Nacional de Urânio (ENU), tentaram sem sucesso impedir a saída de dois camiões carregados com urânio. Durante a tarde resolveram cortaram a linha ferroviária da Beira Alta.

"Se ele nos tem recebido, nada disto teria acontecido. Não vale a pena transformar Canas num barril de pólvora, basta falar connosco. Se isso não acontecer, temo o pior e o culpado do que vier a acontecer é ele [Jorge Sampaio]", frisou o líder do movimento.

Os populares decidiram na terça-feira à noite, em comício, dar "uma semana de trégua" para que o Presidente aceite recebê-los.

Caso tal não aconteça, os protestos serão retomados na próxima terça-feira, dia em que se prevê a saída do terceiro carregamento de urânio da ENU com destino à Alemanha.

Sugerir correcção
Comentar