Do céu caiu esta coisa

Ele é aquele rapaz vulgar que já foi nosso colega de escritório, um tímido "geek" de computadores, trabalhador a prazo em tecnologias de informação. Até há bem pouco tempo, Kerry Conran era esse rapaz. Durante mais de uma década, aprendeu tudo o que havia a aprender sobre computadores numa série de empregos temporários em jornais e revistas, e vivia num pequeno apartamento em San Fernando Valley. Ele não queria dinheiro. Não, o que ele queria em troca dos seus serviços era software gráfico em três dimensões e discos rígidos com muita memória. "Todos os empregos que aceitei foi em função das peças de computador que podia arranjar", diz. "E foi assim que construí o meu Frankenstein".

Conran nunca se importou muito em reiniciar o sistema informático. Não, ele estava a imaginar, com a ambição de cientista louco, como reiniciar toda uma indústria cinematográfica. E agora o mundo pode ver o que ele construiu em "Sky Captain e o Mundo do Amanhã", filme que o argumentista e realizador começou a imaginar quando tinha 10 anos de idade. Esta é uma peça muito original do género fantástico, que nos proporciona uma sensação de conforto e nostalgia, mas que é, simultaneamente, estranha e nova.

A acção do filme situa-se em 1939 e tem como protagonistas Jude Law, no papel do elegante Sky Captain, Gwyneth Paltrow como a corajosa repórter Polly Perkins, Angelina Jolie, de pala no olho, como Franky Cook. Estesn actores são reais. Mas o resto filme foi criado em computador. Não há filmagens no exterior nem cenários. Todo o cenário e as cenas que aparecem - os robôs gigantes a marcharem sobre a 6ª Avenida, em Nova Iorque, os jardins suspensos de Shangri-La, o esconderijo submarino do diabólico cérebro, Totenkopf, ou o Radio City Music Hall - só existem em disco rígido, construídos a partir de uma mistura de fotografias, desenhos e animação.

Os actores estiveram 26 dias num estúdio em Londres (a maioria dos filmes tem um processo de rodagem de três ou quatro meses) interpretando as suas cenas à frente de uma tela completamente azul, azul desde o chão até ao tecto. Cochran e a sua equipa adicionaram o resto - a "pista" de aterragem do Zeppelin no Empire State Building, o minúsculo elefante que cabe na palma da mão, os monstros submarinos...

Muitos filmes de aventuras usam, hoje em dia, animação por computador e efeitos especiais, mas também usam locais reais, constroem elaborados cenários e criam os seus monstros em plástico, espuma, pintura e arame. Os actores de "Quem Tramou Roger Rabbit?", de 1988, foram, como se sabe, filmados perante um cenário azul, mas só a animação é que foi inserida à volta deles. "Sky Captain e o Mundo do Amanhã" é diferente: é todo ele um único efeito especial.

Conran acredita que as suas técnicas - um filme "de acção real" passado num cenário virtual - vai conduzir a um "renascimento na produção cinematográfica independente". Os actores movimentam-se num mundo gerado por computador. Conran diz que o filme podia passar-se em qualquer sítio até onde quiser ir a imaginação, do antigo Egipto a Marte em 2054. Por uma ínfima fracção dos custos, assegura.

"Os estúdios de hoje encontram-se numa posição difícil e problemática pelo facto dos filmes custarem tanto dinheiro e, por isso, têm de ser cautelosos para poderem agradar a um público mais amplo. Portanto, esta é em parte o objectivo da minha experiência. Gostaria que os realizadores independentes e os estúdios pudessem ambos agarrar outras oportunidades, e outra maneira de pensar."

inocência e macacos voadores.

Quando olhamos para Conran - de bermudas, ténis e boné, uma criança enorme de 38 anos - é difícil imaginar como é que conseguiu agarrar três das mais famosas estrelas de Hollywood e lhe deram um orçamento de 70 milhões de dólares para criar o seu sonho.

Conran nasceu e cresceu em Flint, cidade da indústria automóvel do estado de Michigan. O pai trabalhava na Chevrolet como responsável pela linha média de montagem. Michael Moore o realizador de documentários vivia e trabalhava lá nessa altura, no "Flint Voice", um pequeno jornal. Conran nunca se cruzou com ele.

Quando era criança, Conran e o irmão mais velho, Kevin (que também trabalhou em "Sky Captain...", foi a sua primeira contratação como designer de produção), ficavam deslumbrados com a transmissão de filmes antigos na estação televisiva de Chicago, WGN, todos os domingos.

"Tudo isto remonta ao tempo mais longínquo, quando via 'King Kong' e 'Abott and Costello Meet Frankenstein', filmes de Preston Sturges e alguns como 'O Dia em que a Terra Parou'. Adorava-os. Havia uma inocência neles, mas um nível de imaginação extraordinário".

Tal como os macacos voadores em "O Feiticeiro de Oz? ". "Oh pá!, os macacos voadores são a base de tudo. É mesmo isso! Aquela era uma época e um mundo onde não só podiam existir macacos voadores, como a sua existência era incentivada. É mesmo isso. Um mundo onde tudo é possível." Sentimental mas espantoso; é essa a estética pela qual Conran se sente mais atraído.

Conran foi o primeiro da família a deixar a cidade natal, Flint. Foi para Los Angeles estudar na CalArts, a escola de cinema. Por esta altura, começou a pensar na possibilidade de um filme inteiramente criado em computador. O software estava a tornar-se mais sofisticado. Após a licenciatura, iniciou, com um Macintosh IIci, a primeira versão de "Sky Captain e o Mundo do Amanhã". Animando os seus robôs gigantes, construindo a sua Manhattan virtual. Após quatro anos de trabalho, tinha seis minutos de filme. Uma noite, a amiga de um amigo, Marsha Oglesby, produtora de Hollywood, foi a casa de Conran e convenceu-o a mostrar-lhe os tais seis minutos de filme. Marsha ficou siderada com o que viu e mostrou-o ao patrão, Jon Avnet, que, por sua vez, mostrou o filme, com o respectivo argumento, a Jude Law, que o mostrou a Gwyneth Paltrow... Então falaram com o produtor Aurelio de Laurentis para financiá-lo e a Paramount comprou os direitos para os Estados Unidos.

A imprensa especializada calcula que o filme terá custado 70 milhões de dólares. Nada barato. Conran diz que não é contabilista, encolhe os ombros e responde: "o filme custou um quarto ou um terço de um filme de acção de Verão tal como 'Van Helsing' ou 'O Homem-Aranha'".

actores e pontos no chão.

Num armazém em Van Nuys, Califórnia, Conran, o irmão e resto da equipa inspiraram-se no argumento e criaram para o filme inteiro um argumento gráfico, à mão, uma técnica comum. Depois transferiram essas imagens para computador e fizeram um filme de desenhos animados que era um pouco grosseiro mas engraçado - um ante-projecto tosco de animação, onde os aviões voam e as personagens se movimentam. "É estranho como a versão animada reproduz cena por cena o filme acabado".

Conran e a sua equipa podiam decidir, a partir da animação, todos os ângulos virtuais da câmara. Em Londres, construíram um enorme cenário de som e colocaram pontos numerados no chão. "Os pontos estabeleciam o sistema, e quando filmávamos uma cena, por exemplo no Radio Music Hall, dizíamos à Gwyneth para andar do G1 a H5 e J17 e a câmara era posta no F12 para filmar."

Antes de rodar a cena, Paltrow observava a personagem animada a andar pelo Radio City Music Hall. Desta forma podia reagir perante objectos que não estavam lá, tais como os tais robôs gigantes. À medida que Conran filmava Paltrow podia também observar outro écrã que lhe permitia ver os seus movimentos através dos cenários criados por computador. Diz Conran: "A vantagem para os actores era poderem observar o filme, a cena, na versão animada antes da rodagem em estúdio. Foi uma grande ajuda eles terem experiência teatral, porque de facto a interpretação tinha mais a ver com uma peça teatral do que com o cinema."

Conran e a equipa também tinham uma regra: as únicas coisas reais no filme eram os actores, as suas roupas e qualquer objecto que estes tocassem fisicamente. Por isso, quando Jude Law segurava um copo ou a pistola de raio, essas coisas eram reais, mas o quarto onde se encontrava era criado por computador.

Depois de terem acabado as filmagens principais em Londres, Conran e os seus ilustradores podiam então corrigir cada cena, mudar a iluminação, fazer os monstros maiores ou mais pequenos, mais claros ou escuros. "Criávamos os cenários de fundo, fazíamos literalmente as pinturas em fibra de vidro e depois o scanner remetia-os de volta para o computador, e então adicionávamos fotos que alterávamos ou realçávamos em imagens de três dimensões que criávamos a partir do esboço. A beleza disto tudo era que podíamos fazer tudo o que queríamos", afirma.

Conran já está a escrever o argumento e a magicar os efeitos visuais do próximo filme, baseado em "Tarzan", de Edgar Rice Burroughs", "John Carter of Mars", uma série de histórias românticas, projecto que realizadores têm andado a pensar durante os últimos cinquenta anos.

"Vai ser um filme abominavelmente gigantesco", diz Conran. E por que não, tendo sido gerado em grande parte por computador. "Exactamente", diz Conran. "Por que não?"

exclusivo PÚBLICO/The Washington Post (Tradução de Cristina Silva)

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