Ainda há Eça para descobrir

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Este é talvez o último manuscrito importante de Eça que ainda estava em mãos privadas DR

A Biblioteca Nacional comprou em Junho um conjunto de manuscritos de Eça de Queirós desaparecidos há mais de 100 anos e que se julgavam perdidos. A compra foi em tudo especial: por causa da surpresa, mas também do dinheiro investido.

Os documentos são os manuscritos do livro "A Correspondência de Fradique Mendes", no qual Eça de Queirós estava a trabalhar quando morreu (em 1900), e amanhã vão ser mostrados pela primeira vez na Biblioteca Nacional (a seguir há uma palestra de Carlos Reis, coordenador da Edição Crítica de Eça de Queirós e que foi presidente da comissão dos 100 anos da morte de Eça).

O conjunto inclui mais de 300 páginas de provas de tipografia, recortes de jornal e manuscritos (a maioria), e já foi limpo a reparado.

A Biblioteca Nacional (BN) comprou-o num leilão por 50 mil euros, quase metade do orçamento anual para compras de obras raras. "Foi uma das compras mais caras de sempre", disse Diogo Pires Aurélio, director da BN.

Este é talvez o último manuscrito importante de Eça que ainda estava em mãos privadas (pertencia à biblioteca de Salema Garção) e surgiu - para total surpresa dos especialistas - depois de 30 anos de um deserto quase total.

Desde 1975, quando a BN comprou o espólio de Eça (14 caixas), o Estado adquiriu apenas algumas páginas e pequenos fragmentos de pouca importância.

"Era uma obrigação" comprar estes manuscritos, diz Diogo Pires Aurélio. "Só por dificuldades quase catastróficas é que não o teríamos comprado."

Nos meses que antecederam o leilão o nervosismo foi grande pois receava-se que alguém (como um "louco rico") o quisesse comprar a qualquer preço. "Até onde poderíamos ir era a questão", lembra o director. Especialistas de "várias sensibilidades" confirmaram a autenticidade e a importância dos manuscritos e, perante isso, Pires Aurélio sentiu que tinha que ir "o mais alto possível, quem sabe além do possível e imaginário". E foi então que decidiu - pela primeira e única vez desde que tomou posse há dois anos - pedir ajuda ao ministro da Cultura, na altura Pedro Roseta. "E ele disse que cobria até um valor que me deixou descansado", contou Pires Aurélio.

O leilão foi uma "emoção", diz Luísa Cabral, uma directora de serviços da BN que não tinha que lá estar mas foi, tal a excitação. "A sala estava cheiíssima... muitos queirosianos, funcionários da biblioteca e até o professor Marcelo Rebelo de Sousa! No fim, muitas pessoas vieram dar os parabéns à biblioteca."

Carlos Fradique Mendes, a personagem do livro, "apresentou-se ao público português em Agosto de 1869 com quatro poemas ditos 'satânicos', que fizeram sensação", diz Irene Fialho, da equipa para a edição crítica das obras de Eça. As poesias eram uma criação colectiva de Eça, Antero de Quental e Batalha Reis. Eça, porém, deu várias vidas a Fradique e trabalhou a personagem ao longo de 20 anos e até morrer.

Logo em 1870, Fradique surge em "O Mistério da Estrada de Sintra" (que Eça publicou com Ramalho Ortigão) e aí já não é só um poeta mas um "homem verdadeiramente original, superior, que toca violoncelo na perfeição", diz Fialho.

E não se ficou por aqui. Quinze anos depois, com mais "biografia e intelecto", Fradique surge de novo, agora através de um narrador anónimo que primeiro o achou pedante e depois ficou fascinado. E só depois Eça começa então a montar os manuscritos que resultaram no livro "A Correspondência de Fradique Mendes"- publicado já depois da sua morte - e que são os que a Biblioteca comprou.

Luís Augusto Costa Dias, investigador da BN, já leu os manuscritos, comparou-os com "A Correspondência de..." publicada em 1900 e não tem dúvidas: "É certo que a edição de 1900 é substancialmente diferente destes manuscritos e inclui coisas que Eça já tinha claramente rasurado."

A personagem de Fradique, considerada "um marco de modernidade literária", tem alguns traços em comum com Eça, um perfeccionista. "Enviesadamente (em registo ficcional e paródico) há em Fradique alguma coisa do Eça obcecado pela perfeição", diz Carlos Reis. "Um Eça quereescreveu vários dos seus livros."

Quem era o Eça de Queirós que, em 1900, trabalhava ainda Fradique Mendes, que o seu amigo Oliveira Martins definiu como "o português mais interessante do século XX"? Maria Filomena Mónica, historiadora e autora da biografia "Eça de Queirós" (Quetzal), retrata: "Era um escritor que sabia que tudo quanto havia a dizer sobre o país já fora por ele dito, e de forma genial, em 'Os Maias'."

Manuscritos de "A Correspondência de Fradique Mendes" de Eça de Queirós

LISBOA Biblioteca Nacional (Campo Grande)


Inaugura hoje às 17h30. Palestra às 18h. Exposição aberta até 6 de Novembro.


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