A procura da felicidade

Não deixa de ser curioso que estreiem, na mesma semana, filmes de Kusturica e de Otar Iosseliani, criadores de dois universos fílmicos particularmente idiossincráticos.

No caso do georgiano, Iosseliani, poderemos detectar uma imensa coerência na exploração de acção irrisória, quase sem palavras, em que as estratégias de um certo cinema mudo afloram, bem como uma infinita e indizível tristeza. No centro do seu cinema, avulta cada vez mais a importância de um filme como "A Caça às Borboletas", como uma espécie de feixe distribuidor de temáticas e de "gags": aí parecem em contiguidade as influências de uma comédia de costumes "à la Renoir", matizada pela farsa em surdina, enraizada em Jacques Tati, bem como as reminiscências de um anarquismo aristocrático de origem eslava.

"Segunda de Manhã", que agradará por certo aos "iosselianianos", funciona com a perfeição e a meticulosidade do "déjà vu": reconhecem-se personagens - a velha avó, fechada no seu velho mundo e bebendo vinho licoroso, ecoa as velhinhas czaristas de "A Caça às Borboletas", o operário que foge, uma segunda-feira de manhã à monotonia do seu emprego e da sua vida, rima com uma imensa galeria de "vagabundos", "mendigos" e transgressores de outros filmes.

No centro desta viagem do protagonista, para escapar ao quotidiano apagado e tristonho, estão também duas das características fulcrais do cineasta: a insistência na incorrecção política (veja-se a importância dos sinais de proibição de fumar, unindo os operários da fábrica em França e os trabalhadores do estaleiro da Marghera, em Veneza) e o gosto pela deambulação, como se a fuga ao acabrunhamento e à angústia de um quotidiano infeliz dependesse da capacidade para conhecer outros horizontes, numa viagem sem rumo nem destino.

É claro que a leitura de uma história exemplar do homem que foge de casa e das suas obrigações laborais, para rumar ao Sul e a terras mais benfazejas, se reveste de conotações de classe, numa revisita que tem antecedentes gloriosos em filmes como "À Nous la Liberté" de René Clair ou "Tempos Modernos" de Charlie Chaplin: a classe operária como vítima de uma desumanização e de uma mecanização, que rouba a alma. E, no entanto, Iosseliani não resiste a configurar o seu "operário fugitivo" como pertencendo a uma espécie de aristocracia decadente e iluminada por lampejos de revolta contra o mundo cinzento da modernidade - na velha casa, quase em ruínas do pai, confronta-se com sombras de outros tempos, recebe dinheiro em notas, guardadas numa resistência absurda ao poder capitalista, e tem o contacto com o marquês veneziano, que promete visitar no velho "palazzo" semi-arruinado no Gran Canale.

Uma vez chegado ao Sul mítico e ensolarado, de que Veneza constitui um quase estereótipo, o protagonista deixa-se roubar sem que tal constitua mais do que o pretexto para mais um "gag". E o périplo pelos canais, guiado por um outro trabalhador, tão "alienado" como ele, passa pelo fascínio do olhar. Filmam-se as pontes e os "palazzi", como se se tratasse de uma paisagem lunar um outro "planeta", mas a mesma dificuldade de encontrar a felicidade.

De regresso a casa, aos mesmos problemas com os canos podres, com a falta de dinheiro e de amor, com as desigualdades sociais, numa aldeia sonâmbula e sem esperança, em que o bisbilhoteiro carteiro se parece com Tati, em "Há Festa na Aldeia", o herói vazio e serenamente desesperado escolhe prosseguir o ramerrame sem horizontes que deixara. A tristeza é profunda e a felicidade impossível. O mundo abriu-se para uma Veneza de cenário, belo como a encenação de antigos esplendores, que o marquês, amigo do pai, encenou para ele, mas tudo acaba nos confins limitados da sua aldeia e da sua vida.

Metáfora lucidamente negra da condição humana a braços com a sua pequenez, "Segunda de Manhã" poderá nada trazer de novo ao nosso conhecimento de Iosseliani, mas possui uma força terrível, na sua aparente placidez.

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