Pequeno adulto

Boa estreia, a de Catarina Ruivo: a sua primeira longa-metragem é um filme sóbrio e rigoroso, capaz de construir um olhar sobre a infância que a devolve como idade complexa e assombrada.

A figura de fundo é a ausência (no caso, a do pai), e é perante esse quadro "assimétrico", onde a família deixa de ser um invólucro caloroso para se tornar na lembrança da sua inexistência, que "André Valente" se desenvolve. André Valente é também o nome do protagonista (um notável achado de "casting" chamado Leonardo Viveiros), e se não é completamente verdade que o filme veja o mundo (apenas) a partir dos seus olhos, não é completamente mentira que o filme mostra a maneira como os seus olhos tentam reconstruir um mundo (o "seu" mundo) súbita e irremediavelmente abalado.

Uma das coisas que mais contribuem para o acerto de "André Valente" é o facto de, sem deixar de tratar o protagonista como a criança que ele obviamente é, não deixar por isso de o filmar como o pequeno "adulto" que ele sente a responsabilidade de ser. Desaparecido o pai, resta ele como homem da casa - na sua relação com a mãe (Rita Durão) perpassa a ambuiguidade dos estatutos (quem toma conta de quem?), sendo certo que para o miúdo a responsabilidade está muito mais do lado dele. A sequência do suicídio frustrado da mãe é só a confirmação - para ele - desse seu estatuto protector.

A mesma sensação prevalece na sua relação com o imigrante russo (Dimitry Bogomolov) com quem trava amizade. Começa por ser quase a retribuição de uma dívida de gratidão (foi o russo quem o ajudou na noite em que a mãe se tentou suicidar), mas passa a ser também um relacionamento "entre pares" até se impôr, a dada altura, como uma escolha semi-consciente de substituto do pai.

Catarina Ruivo filma a sua história num registo naturalista e algo austero, avesso a contemplações. Há sempre qualquer coisa de bastante cerrado no olhar da câmara, sejam os interiores dos apartamentos onde maioritariamente se desenrola a narrativa, sejam os cenários urbanos um pouco cinzentos e desolados (imediações da Calçada de Carriche e Lumiar). Há como que um espaço "marcado" e circular, bem expresso num "travelling", muito comprido mas muito fechado sobre os rostos dos actores, que mostra a caminhada de André e de uma amiga a caminho da escola. Essa presença carregada da "realidade", física, geográfica, rima a realidade desarmónica da vida familiar de André, e a fuga faz-se para "dentro", provavelmente para dentro da infância: os brinquedos, sim, mas sobretudo os patins de gelo que servirão para aproximar as personagens do miudo e do russo.

Com um tom enxuto que concilia bem a gravidade e o pragmatismo, é uma primeira obra suficientemente madura para que se fique atento ao futuro de Catarina Ruivo.

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