O espião que veio do quente

"Supremacia"/ "Bourne Supremacy" assume-se como uma sequela de "Bourne Identity" e cria, a partir das novelas de espionagem de Robert Ludlum, uma personagem curiosa, mito de herói "à la Bond" e de figura angustiada e triste de "perseguido sem causa".

No protagonista, a ambiguidade magoada de Matt Damon funciona em pleno: amnésico, depois de ter feito parte de uma missão especial altamente secreta, o agente Bourne refugia-se numa relação salvadora com Marie que, no início desta sequela, é morta, sem aparentes razões, em espectacular sequência submarina. Da perda, resulta uma espécie de sonambulismo raivoso, que Damon gere com eficácia, percorrendo um longo périplo geográfico (mais umas das desejadas rimas internas com os filmes de James Bond) de Goa, onde a acção arranca, a Berlim, passando por Nápoles e por uma Rússia reminiscente das "saudosas" ficções da Guerra Fria.

Com câmara nervosa e acrobática a conferir ao filme surpreendente tensão, entramos num registo de aventura que nunca dispensa a densidade de personagens pouco explicadas, rodeadas de mistérios e de nebulosas contradições. A realização de Paul Greengrass é escorreita e profissional, mas a montagem trabalha sobre elipses e segredos de forma a dar profundidade a simples explosões ou a pirotecnias de efeitos. Existe sempre a procura de uma razão para acções inexplicadas (ou inexplicáveis) de forma a prender o espectador a uma exposição aleatória de violência, com o rosto conturbado de Matt Damon a encher o ecrã, num assassino profissional vítima da sua incapacidade para recordar e de uma conspiração de contornos muito pouco definidos.

Ao contrário dos veículos para o mais famoso dos espiões, James Bond, os locais visitados acabam por nunca funcionar como personagens, apesar de a Alexanderplatz, em Berlim, remeter para memórias de outras ficções e do exotismo de Goa dar "a quente" o tom adequado à abertura. Vêm, pois, à mente outros bem mais metafísicos tratamentos da espionagem, como "O Espião que Veio do Frio", em que o próprio labirinto da mente do protagonista e as razões da sua vingança cega servem de justificação para uma desesperada luta pela sobrevivência.

Não nos parece que existam, em "Bourne Supremacy", razões mais elaboradas do que o aproveitamento de um filão de entretenimento, a actualizar um sub-género que a queda do Muro de Berlim veio questionar. O que existe, porém, é um requintado sentido do espaço e um extremo bom-gosto na renovação parcial do "déjà vu": as sequências no Hotel e os "flashbacks" da morte do estadista russo, bem como o encontro com a jovem russa numa terra de ninguém, saída das ruínas da URSS, evidenciam um cuidado de contextualizar a perda, mais do que um mero exibicionismo de meios. Há personagens, há sentido de "mise-en-scène", há um trabalho sobre o argumento de peripécias soltas feito. Se temos que continuar a consumir materiais reciclados de uma memória fílmica recente que, pelo menos, nos confrontemos com um produto industrial de boa feitura.

No fundo, "Supremacia" não aspira a muito mais: melhorar o filme original, de que é sequela, manter um público orfão de "boas aventuras de espionagem" e, eventualmente, preparar uma nova sequela.

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