A noite da gaivota

Antigo colaborador de François Truffaut, Claude Miller por mais de uma vez tentou assumir-se como uma espécie de seu herdeiro legítimo. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando filmou "La Petite Voleuse", em 1988, partindo de um argumento que Truffaut, falecido quatro anos antes, deixara escrito. Mas esta não é apenas uma questão de vontade, e o cinema de Miller, por maior ou menor que seja a inspiração colhida em Truffaut, nunca esteve, nem de longe nem de perto, à altura do seu modelo. "A Pequena Lili", que se pretende uma evocação de "A Noite Americana", volta a deixá-lo bem expresso.

Miller não faz a coisa por menos: "A Pequena Lili" tem argumento inspirado n'"A Gaivota" de Tchékov. Pode-se perguntar para que serve isso para além de servir como caução, visto que o filme não é "A Gaivota" e o trabalho de adaptação opera tantas mudanças que do texto de Tchékov praticamente não subsiste mais do que a situação que oferece a base narrativa. Uma família (complicada) junta-se numa casa de campo, as personagens mantêm diálogos mais ou menos existencialistas (normalmente a cargo da personagem de Jean-Pierre Marielle, a mais sólida de todas mesmo que apenas marginal) e discussões sobre os afectos e os conflitos que as unem e separem. O fundo artístico passa a ser o cinema: há dois realizadores entre o grupo - um, popular e consagrado, interpretado por Bernard Giraudeau, outro principiante e "autor irredutível", a cargo de Robinson Stévenin - mais uma actriz (Nicole Garcia, amante do primeiro realizador e mãe do segundo) e uma aspirante (Ludivine Sagnier, namorada do segundo e objecto de desejo do primeiro). Há discussões entre o consagrado e o principiante, discussões sobre "o cinema", que passam por ser uma reflexão - e presume-se que Miller se projecte no primeiro - sobre esse eterno dilema da "natureza" do cinema: arte ou comércio, intelectual ou popular? Mas as personagens são tão fracas, especialmente a de Robinson Stévenin (que chega a ser insuportável), e os diálogos são tão cheios de ideias feitas que nem por aí o filme arranca.

Depois dão-se uma série de acontecimentos, rupturas, e um "flash forward" leva-nos para alguns anos mais tarde. Ludivine é já uma "starlet" em ascenção, Robinson prepara um filme ambicioso: nem mais nem menos do que uma reconstituição dos acontecimentos a que assistimos durante a primeira parte. Se é aqui que mais directamente se evoca "A Noite Americana", através do ambiente dos bastidores e dos plateaux, e dos cruzamentos entre a ficção e realidade, também é a parte mais inútil do filme. Em estilo galvanizado (repare-se na música, a tentar conferir "gravidade"), Claude Miller pouco adianta em relação à estafadíssima celebração da "magia do cinema", fascinada e auto-indulgente, decorativa e muito, mas muito, pomposa.

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