O fantasma do pai

Logo à primeira, um Leão de Ouro em Veneza. Carreira curta e de sucesso rápido, a de Andrei Zviagintsev, que com a primeira longa-metragem que realizou conquistou imediatamente um dos mais importantes e cobiçados prémios do circuito dos festivais internacionais. Isso e, claro, as inevitáveis referências a Tarkovski, de quem Zviagintsev, pode-se ler em inúmeros sítios, seria o enésimo "herdeiro" - mas por alguma razão, a procurar porventura mais em Pavlov do que em Freud, é habitual que o nome de Tarkovski venha associado à descoberta de cada novo cineasta russo.

De resto, e pegando por aí, "O Regresso" nem tem muito que legitime a convocação (apenas) de Tarkovski. É russo, tem uma atmosfera "russa", conserva algumas concepções estéticas e temáticas (a relação com a natureza, por exemplo) que, mais do que o ligarem ao cineasta de "O Espelho", o inscrevem, "mutatis mutandis", numa tradição presente no cinema russo desde tempos ancestrais (e soviéticos, inclusivamente) - assim como o cinema de Tarkovski, pesem embora todas as suas peculiaridades, também se inseria.

"O Regresso" conta o que acontece quando um pai, ausente durante 12 anos, volta subitamente à casa familiar, para junto da mulher e dos dois filhos. Volta, apenas, sem explicações nem para a deserção nem para o regresso, ninguém sabe muito bem nem o que ele é nem o que faz ou fez, durante o filme lançam-se algumas pistas mas são todas inconclusivas e potencialmente enganadoras. Regressa, e pronto; mal conhece os filhos, e estes não o conhecem de todo, precisam de consultar uma velha fotografia para confirmarem que sim, aquele homem é o pai deles. Depois, pai e filhos partem numa viagem de alguns dias, aproveitando uma tarefa qualquer, nunca esclarecida, que o pai tem de cumprir, para - segundo o plano - irem pescar para um lago. Relação tensa entre a austeridade e "desacerto" sentimental do pai e a autoridade que os filhos (não) lhe reconhecem, a caminho de um final, digamos, funesto.

Zviagintsev filma isto tudo num balanço entre uma espécie de naturalismo calculadamente sofisticado e uma certa tendência para um "pictorialismo" que pode ser bastante indigesto (o plano em que os filhos espreitam o pai recém-chegado, que está a dormir e é enquadrado como um "Cristo morto"). É um filme um pouco "poseur", parece estudado de maneira a reflectir no espírito do espectador precisamente uma série de coisas que ele associa ao cinema russo. Mas conserva qualquer coisa de intrigante, entre a sombra da mãe (essencial, mesmo que acabe por ser ela a grande ausente) e a presença ambígua do pai.

Nesse aspecto, "O Regresso" é como "O Segundo Círculo" de Sokurov, filme onde a questão girava em torno do cadáver de um pai que era, sobretudo, um estorvo. Aqui também se podem multiplicar as hipóteses "explicativas": como se num acesso (agora sim) de freudianismo reprimido durante décadas voltassem os fantasmas de uma relação mal resolvida com o "pai" (por exemplo, o "pai dos povos"). Nada (e ao mesmo tempo, tudo) no filme sustenta particularmente a leitura alegórica, mas "O Regresso" é de 2003 e subtraindo 12 anos a essa data vamos dar a 1991 e à dissolução da União Soviética...

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