Um mundo de espelhos

Um dos segredos de "Shrek" residia no facto de não ser um filme exclusivamente apontado ao universo dos espectadores infantis. Piadas em segundo grau, citações, referências, piscadelas de olho - tudo isto abundava em "Shrek", assim como a sua própria estrutura narrativa assentava (por exemplo na construção das personagens) numa espécie de releitura de arquétipos e estereótipos oriundos das mais clássicas tradições da fábula e do conto popular. Havia um filme para os miúdos, coisa muito directa e muito imediata, mas também havia um filme para os mais crescidos, que se podiam divertir na contemplação de todo esse trabalho de "desconstrução" e bem disposta "subversão".

Em "Shrek 2" repete-se a receita. Se possível (o filme mostra que sim) de maneira mais ampla e mais extensa. O universo referencial agora é "totalizante", já não é apenas a tradição dos contos infantis que é chamada a marcar presença mas todo um arsenal de referências "culturais", que vão da música ao cinema. Quase todos os efeitos cómicos de "Shrek 2", quase tudo o que é fundamental na sua lógica de construção de "gags", assenta num jogo com o conhecimento prévio do espectador, e voltam a alusão e a citação como mecanismos essenciais. De alguma forma, "Shrek 2" constrói o seu espectáculo a partir de uma inspiração colhida na própria tradição do espectáculo. Um óptimo exemplo, que dentro do filme soa quase a uma "confissão" do seu modo de funcionamento, é a "colagem" do reino de "Far Far Away" ("Bué Bué de Longe", na tradução portuguesa), onde se passa a maior parte da acção do filme, a uma reprodução "fabulosa" de Los Angeles enquanto cidade do "show biz" e de... Hollywood: e lá se vislumbra, nas colinas ao longe, o letreiro que substitui a palavra "Hollywood" por "Far Far Away".

Em parte, é também por isso que é mais difícil ao espectador recordar-se da "narrativa" de "Shrek 2" do que de episódios, fragmentos, "gags", figuras. É como se o filme fosse um caldeirão onde todas estas diversas referências fossem misturadas e servidas com outro arranjo. Por exemplo, uma cena de salvamento "in extremis" que põe Pinóquio a mimar Tom Cruise na "Missão Impossível" e onde o seu nariz cresce à força de mentiras sobre o facto de usar... roupa interior feminina. Até a banda sonora investe nesta linha, de modo mais evidente do que no primeiro filme: um filme de animação dirigido ao grande público que tem, por exemplo, um bar (enfim, uma estalagem ou coisa parecida...) onde há um pianista que se entretém a cantar canções de Tom Waits ou de Nick Cave não é certamente coisa muito comum.

Mas outro ponto onde "Shrek 2" revela uma sagacidade e uma imaginação muito próximas do absoluto brilhantismo é na maneira como joga com as personalidades e com as "imagens" daqueles que, no filme, ficam sem se ver: os actores que dão as vozes às personagens. Se o Burro de Eddie Murphy e a Princesa Fiona de Cameron Diaz já no primeiro filme trabalhavam esse aspecto, "Shrek 2" leva-o mais longe. Julie Andrews no "papel" da Rainha convoca óbvias memórias do passado cinematográfico da actriz inglesa e John Cleese a oferecer a voz à personagem do rei estabelece um "link" bastante directo com a tradição britânica e "montypythoniana", por excelência referencial e "desconstrutora". Algumas personagens, no entanto, parecem inteiramente construídas em torno do universo, da "imagem", transportada pelas vozes que as animam. A mais notável de todas será seguramente a daquela mistura entre Gato das Botas e Zorro, que condensa os recortes de personagens "clássicas" num esteréotipo de "galã latino" semi-poltrão: a voz (e o sotaque manhoso) dessa personagem são de... Antonio Banderas, e este gato espadachim e gabarola praticamente desaloja o Burro do estatuto de "principal coadjuvante" das aventuras de Shrek e Fiona. Como que a confirmar que tudo em "Shrek 2" é feito de brincadeira auto-consciente, a própria usurpação desse estatuto acaba por estar na fonte de não poucos diálogos e piadas.

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