Romeu e Julieta em Teerão

Há muito que o cinema iraniano diversificou estetica e eticamente o cinema que vai mostrando ao mundo: este "Baran", embora aposte numa grande simplicidade narrativa, não abdica nunca de um olhar fílmico algo complexo, feito de elaborados planos de grua e de belos "travellings" sobre as carcaças dos prédios que se erguem em torno da cidade grande.

Assim, do que poderia funcionar como a recuperação de um imaginário basicamente neo-realista, ergue-se uma bela história de amor, contada com requintes estilísticos (por vezes, até excessivos), rigorosos enquadramentos e bem pensado trabalho de câmara: um trabalhador afegão, emigrado no Irão, cai dos andaimes e parte um pé; para que a família possa sobreviver, a filha, Rahmat, faz-se passar por um rapaz e acaba por substituir o jovem encarregado na obra de servir o chá, fazer as compras, fazer as refeições e outros trabalhos mais ligeiros, Latif. Assim contada, a "história" descreve os seu próprios limites: se quisermos, no fundo, não se passa nada, a não ser um labirinto de olhares e de pequenos gestos, quando Latif descobre, num belíssimo plano, em que a jovem travestida se penteia, o segredo de Rahmat e se apaixona por ela, passando a segui-la para toda a parte, protegendo-a e, em última instância, renunciando a ela.

Sem que se ergam, propriamente, as barreiras familiares ou políticas que caracterizam as diversas variações sobre o "motivo" de Romeu e Julieta, aparece como muito claro, desde o início, que os amores castos dos protagonistas têm por pano de fundo uma diferença étnica e rácica essencial: todo o drama latente dos trabalhadores explorados e clandestinos joga com o facto de aos refugiados afegãos estar proibido o trabalho sindicalizado. Existe, por isso, um confronto entre cidadãos que têm direito à existência, porque têm papéis que os identificam, e os párias, mão-de-obra barata, condenados apenas à sobrevivência.

Neste contexto, se situa o romance de amor, com tangentes ao que se convencionou chamar a "escola iraniana". No entanto, o filme de Majid Majidi, se possui algum do tom sacrificial e ritualizado do cinema de Abbas Kiarostami, por exemplo, coloca a tónica numa maior liberdade representativa, optando embora por uma melancólica paleta de cores: tratando o microcosmos da construção civil como um lugar opressivo e concentracionário, "Baran" compraz-se na beleza dos fumos que recortam as personagens, na abrangência dos picados e na subtileza de estratégia quase escapista em relação ao mundo que prende e condiciona os amantes.

Em comum com os universos de Kiarostami e Moshen Makhmalbaf, este filme reclama para si uma dimensão alegórica, de uma quase fábula que ilude a crueza das questões políticas (muitas e muito complexas) para se deter no valor da gestualidade: no final, Latif perde a sua "identidade" para conseguir caução para o empréstimo que "liberta" a sua bem-amada, mas o momento fulcral é da pegada desta marcada na lama, quando deixa para trás o sapato, sinal vulnerável de uma cinderela proletária.

Todavia, a opção principal do filme é a de arrastar a narrativa por preciosas minúcias de um quotidiano sem excepcionalidades: as refeições, os percursos pelo campo, uma iniciática descoberta do amor, tudo recortado contra um mundo surdamente hostil. Não há tomadas de posição, não existem heroicidades nem vilanias, tudo se desenha em surdina "sem história nem grandezas". O "Romeu" iraniano e a "Julieta" afegã separam-se sob o signo da chuva ("Baran" significa "chuva") que apaga o traça do pé no barro. Como se da narrativa e dos seus motivos dramáticos nada ficasse para contar.

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