Um caldeirão dos infernos

Imponente e de aspecto monstruoso. A pele é vermelha escarlate, a mão direita de pedra e na testa figuram duas saliências que aparentam já ter sido cornos. E há ainda a longa cauda encaracolada, que a gabardina até aos pés não esconde... Tem tudo para ser um produto dos nossos piores pesadelos. Mas apesar de ter nascido no Inferno, luta para proteger a humanidade.

Quem é ele? Hellboy. Se não o conhecem, não estranhem, pois no vasto panorama da BD, em termos de popularidade a personagem criada por Mike Mignola não se aproxima de "clássicos" como Batman ou Homem-Aranha, ícones da cultura "pop" há muito enraizados no imaginário colectivo. O "comic" de Mignola será antes um "acquired taste", fenómeno de culto que foi construindo um fervoroso grupo de apoio.

Entre os fãs incondicionais está Guillermo del Toro, que agora transpôs para o grande ecrã o mundo contido nessas páginas. O realizador mexicano, um dos cultores do actual cinema de terror, tem dividido a carreira entre obras pessoais, produzidas no país natal, e experiências em Hollywood, com outras ambições comerciais. No primeiro caso, estão "Cronos" (1992) e "Nas Costas do Diabo" (2001); na segunda categoria, "Mimic" (1997) e "Blade 2" (2002). Nesse saltitar constante, "Hellboy" vinha com a promessa de significar um momento decisivo, por ser anunciado como a fusão entre as obsessões do cineasta e os orçamentos generosos.

E o resultado deste projecto de sonho é, apesar das alterações e dos acrescentos, uma adaptação fidedigna da matriz original (de resto, Mignola serviu de produtor associado). O que nem espanta, vindo de alguém que nunca escondeu a admiração por "comics" (e, em particular, "Hellboy" - "o único na minha vida adulta pelo qual me entusiasmei tanto como quando era criança") e sempre se movimentou no campo do fantástico. Assim, apesar de conter elementos de outras histórias (incluindo o delirante "The Corpse", para muitos, incluindo o próprio Mignola, a melhor aventura de Hellboy), o filme toma como base, acima de tudo, as duas mini-séries iniciais da personagem: "Seed of Destruction"/ "Semente de Destruição" (publicada em 1994) e "Wake the Devil"/ "Despertar o Demónio" (de 1996).

Da primeira, é recuperada a estranha origem de Hellboy, um diabinho que é transportado até à Terra na sequência de uma tentativa desesperada por parte das forças nazis de, nos estertores da II Guerra, virar o conflito a seu favor através da magia negra. Resgatado pelos aliados e educado (dentro do possível...) como um humano, cresce e acaba por se tornar o agente n º 1 de uma organização governamental secreta, ao lado de parceiros igualmente insólitos, como Abe Sapien, "homem-peixe" telepata, ou Liz Sherman, mulher com poderes pirotécnicos. vÀ segunda, Del Toro vai essencialmente buscar a revelação da identidade do responsável pela invocação de Hellboy, o vilão-mor Rasputin (sim, esse mesmo, o monge que conhecemos da História como conselheiro do último czar da Rússia, Nicolau II...), e o final, em que se dá a conhecer o destino do protagonista, suposto arauto da destruição do mundo. No fundo, o filme funde numa única intriga aquelas que, mesmo não correspondendo ao início de tudo (afinal, entre as duas mini-séries houve outras aventuras de Hellboy, que já antes, em 1993, fizera a sua primeira aparição nas páginas do "San Diego Comic Con Comics 2"), são as histórias definidoras das linhas mestras de um edifício que tem vindo a ser erigido desde então.

Para trás, na carreira de Mignola, ficava uma década como "contratado" nas grandes editoras, Marvel e DC, para as quais desenhou Hulk ou Super-Homem. Cansado de trabalhar com personagens que não lhe pertenciam, decidiu-se (à semelhança de Frank Miller e "Sin City" ou Todd McFarlane e "Spawn") pelo desafio de lançar uma série que fosse, de raiz, sua. E, não sendo "tout court" um "'comic' de autor" (é publicado pela Dark Horse, situada num limbo entre independência e "mainstream"), "Hellboy" veio permitir a Mignola outra liberdade (por exemplo, avançar a seguir com Hellboy Jr., versão mais jovem, a roçar o escabroso, da personagem, repescando a infância no Inferno).

vale tudo.

Mas, afinal, o que explica o fascínio de "Hellboy", que conta entre os seus adeptos com Robert Bloch (autor de "Psycho", o romance que inspirou a obra-prima de Hitchcock), Alan Moore (figura de proa da BD contemporânea, criador de "Watchmen") ou Clive Barker? O Y perguntou isso mesmo a admiradores da criação de Mignola, todos eles ligados ao mundo da nona arte. E a resposta é unânime: muito do charme do "comic" reside na enorme mescla de estilos e géneros à partida dissonantes.

Paulo Costa, um dos sócios da BdMania (livraria especializada em BD, importadora e distribuidora de material estrangeiro e nacional, situada no Chiado, em Lisboa, e tendo como braço editorial a VitaminaBD), destaca a importância dos "elementos de aventura clássica e da mitologia das ilhas britânicas", bem como "os ambientes rurais ou campestres, os pelourinhos e estradas de terra batida". Já Tiago Sério, proprietário da Mongorhead (outra loja, esta apenas importadora, virada para a BD e demais artigos de coleccionismo, que pode ser encontrada no Centro Comercial Portugália, em Lisboa), fala num "caldeirão vasto" e realça os "aspectos de folclore pangermânico" ou a mistura de "Lovecraft com Indiana Jones". O que está em causa é então, como diz Vasco Lopes, também da BdMania, "a originalidade de apanhar vários conceitos, do terror da série B a 'Ficheiros Secretos'".

Resumindo, "Hellboy" não é bem um "comic" de terror, mas também não é um "comic" de super-heróis, de aventuras, FC ou guerra. Ou melhor, é tudo isso e mais qualquer coisa, uma síntese que coloca em cena uma realidade paralela e única, muito "chunga", urdida com as linhas da imaginação, estilo e argúcia. Nas palavras do autor: "uma salganhada sem nome, onde tudo, mas mesmo tudo, o que li sobre aventura e esoterismo desde a universidade, os livros 'pulp', os contos de fadas, 'Drácula', os mitos, as conspirações, foi atirado para um saco".

A sedução de "Hellboy" é essa, a de caminharmos por uma estrada tortuosa, num misto de maravilhamento e temor, sem sabermos o que pode estar ao virar da esquina: cemitérios sinistros, mansões decrépitas, castelos sombrios; vampiros, feiticeiros, nazis ("Um inimigo que fica sempre bem, pois ninguém põe em causa e graficamente dá muitas opções a nível de fardas, insígnias e armas", diz Paulo Costa); monstros tentaculares e inomináveis, cabeças voadoras, cadáveres falantes...

Mas não se pense que por trás deste "vale-tudo" estranho e macabro não existe critério, pois Mignola assume-se como um estudioso dos mitos clássicos (também andam por aqui figuras da mitologia grega como Hécate ou Medeia) e das tradições populares. Para Tiago Sério, um dos grandes feitos é a "criação de um universo coeso, pondo inclusive personagens reais" - Rasputin ou Himmler - "num cenário fictício, mas com uma base científica, de pesquisa". Uma preocupação também apontada por Vasco Lopes, para quem o autor "consegue misturar bem a faceta americana das histórias com um 'background' europeu - dos mitos celtas ao folclore dos países da Europa de Leste -, aproveitando toda uma história cultural que os EUA não têm". Além disso, há que contar ainda com o traço característico de Mignola, a dar ao todo uma coerência extra, através das suas sombras negras e contrastes de cor. Segundo José de Freitas, director da Devir, editora que publica "Hellboy" em Portugal (já estão disponíveis as mini-séries que inspiraram o filme), ele é "um dos mais virtuosos expoentes do claro-escuro, da mistura do preto com as outras cores, capaz de ser ao mesmo tempo muito depurado e pormenorizado".

Independentemente de tudo isto, convém não esquecer que a singularidade do objecto não pode ser dissociada do protagonista: um demónio (com personalidade de vinte e poucos anos, apesar de já ter sessenta) que rejeita a sua natureza de "Besta do Apocalipse" e viaja pelo mundo a investigar fenómenos paranormais, como um detective do oculto (a gabardina não é só adereço; a tradição "noir" é outra influência, como o comprovam o sarcasmo "cool" de duro "private eye" e as feições rudes, desenhadas no estilo "queixo quadrado" do lendário Jack Kirby). À falta de melhor, podemos arrumá-lo na gaveta sem fundo dos anti-heróis, um tipo simples confrontado com ameaças interdimensionais e cujo sonho é, como refere José de Freitas, "ver TV a comer pizzas e fumar charutos" ("É quase americano demais, classe operária, para ter vindo do Inferno", conclui Vasco Lopes). Ou então, fazer como Del Toro (para quem o filme é uma "autobiografia temática", pelos paralelos entre a vontade de Hellboy em escolher o seu próprio caminho e as dificuldades sentidas no México, enquanto crescia, para se tornar realizador de cinema fantástico), que vê na figura a que o seu actor preferido, o gigante Ron Perlman, dá corpo a "representação comovente de tudo o que há de humano dentro de um monstro".

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