Hoje mudamos de casa

Está-se no centro de uma cidade (o Porto) em "Desassossego". O filme de Catarina Mourão é uma peculiar abordagem vida urbana contemporânea, orientado pela paisagem da cidade e pelos seus edifícios, mas centrado numa entidade ao mesmo tempo muito concreta e muito simbólica: a casa, as casas, entre a ideia e o facto. Para a realizadora, sendo o filme que se seguiu a "A Dama de Chandor", "Desassossego" obedeceu a um desafio pessoal: "Quis fazer um filme que se passasse aqui, onde não houvesse qualquer sombra de 'exotismo', um filme que se passasse num universo espacial muito próximo do meu".

O mote foi dado por uma experiência pessoal de mudança de casa, que lhe deu a ideia de um filme sobre transportadores de mobílias. Na estrutura "em três partes" de "Desassossego", essa acabou por ser a terceira, onde seguimos um pequeno transportador, com todos os ecos de um vago anacronismo que fazem da personagem (chamemos-lhe assim) um representante de "outro" tempo, ou, se se preferir, de "outra" cidade. E para a realizadora, a ideia de uma espécie de "radiografia" da cidade era importante.

A expansão do projecto deu-se, conta Catarina Mourão, "durante a fase da pesquisa". "Em vez de fazer um filme mais convencional, resolvi, mantendo a ideia da casa e das mudanças, dividir o filme em três partes, centrada cada um num universo e numa história diferentes".

Temos assim que, em "Desassossego", para além do segmento com o velho transportador, encontramos uma primeira parte focada no trabalho dos agentes imobiliários e uma segunda que mostra uma rapariga, recém-proprietária, no trabalho de adaptação da casa nova. Outra ideia importante perseguida com esta estrutura era, para a cineasta, "a vontade de criar no espectador a própria ideia de 'mudança', transportá-lo de um universo para outro, diferente daquele a que já estava habituado".

A primeira "história", sobre a agência imobiliária, é, dentro do filme, a que mais faz lembrar o tom de "Fora de Água", o primeiro filme de Catarina Mourão, sobre instalações de arte pública numa vila alentejana. Vê-se o trabalho dos agentes imobiliários, a partir dum ponto de vista que encontra a distância suficiente para que se veja simultaneamente a encenação inerente à actividade e a justificação dessa encenação - que cinematograficamente coexistem no mesmo plano. "As três partes correspondem a uma espécie de trajecto meu, pessoal, entre um olhar mais distante e um olhar, se calhar, mais intimista".

O ponto de chegada nesse trajecto, a história do transportador, é o que assenta numa relação mais "activamente" pessoal: "o homem da terceira história foi aquele que mais 'provoquei', que mais 'dirigi', e essa última parte foi a que mais conduzi rumo à direcção que mais me interessava, até porque queria que ela ecoasse, mesmo que de maneira não muito óbvia, as duas primeiras histórias, que de alguma maneira as comentasse".

Mas "intimista" também é a palavra certa para descrever o segundo segmento, com o tom mais "diarístico" de todo o filme: uma rapariga na sua casa nova, pintando, adaptando, reflectindo, conversando ao telefone. "Foi a parte do filme mais 'esculpida' na montagem, e houve muita coisa que escolhi deixar de fora". Num certo sentido, é o episódio onde há mais "mistério", na acepção "literária" do termo. Faz lembrar, curiosamente, um punhado de filmes da belga Chantal Akerman, aqueles onde há personagens femininas encerradas no espaço de uma casa, semi-refúgio semi-prisão - Catarina diz que "já não é a primeira vez que lhe notam isso", e acha que é uma coincidência interessante.

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