As leis do desejo

Depois da perfeição de "Tudo Sobre a Minha Mãe" (1999), muitos se interrogaram sobre que caminho tomaria a obra de Pedro Almodóvar, por onde poderia ele escapar á repetição e à fórmula, ainda que genialmente exposta. "Fala com Ela" (2002) respondeu apenas parcialmente às magnas questões: o cineasta aparecia em fuga para a frente, com o filme dentro do filme, numa reflexão sobre a morte, o "amour fou" e a ressurreição, que se esgotava no próprio projecto.

Tratava-se de um belíssimo melodrama, sem saída nem sequelas possíveis, de tal maneira operava uma síntese sobre actores "fetiches" e processos de ficcionar. De certo modo, ambos os filmes constituiam sínteses pessoais e intransmissíveis de uma ruptura que começara com a farsa descabelada de "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos" (1988), com a qual se aproximara de um quadro de grande produção de visibilidade internacional. Depois, "Ata-me!" (1990) variava sobre o melodrama, com resquícios de "film noir" e inesperado final feliz, "Saltos Altos" (1991) brincava com o musical na ausência da estrela que quis fazer ressurgir no seu universo, Sara Montiel, a rainha do "kitsch" hispânico. "Kika" (1993) e "A Flor do Meu Segredo" (1995) experimentavam com mediações audiovisuais e literárias, desde a "cabeça-câmara" do primeiro, ao romance cor-de-rosa do segundo. "Em Carne Viva" (1997), livremente baseado em Ruth Rendell, combinava a estrutura do policial "noir" com um regresso propositado aos medos franquistas, a uma época de terror psicológico, que marcara todo o imaginário espanhol e um quotidiano cercado de tabus morais e sexuais.

Tudo parecia, pois, já cumprido sem novos caminhos a traçar. "Má Educação" faz uma aposta arriscada: regressa aos tempos do franquismo, recupera a essência do filme "noir" e coloca (finalmente) em efígie a presença sempre ansiada de Sarita Montiel, presente no filme que se vê no ecrã e no "travesti" que lhe interiorizou os tiques, servindo de modelo ao protagonista (fabuloso Gael Garcia Bernal) para o seu boneco no filme dentro do filme. No entanto, a grande "novidade" deste Almodóvar passa pelo facto de retomar, com todo o saber entretanto acumulado, o mundo conturbado de "A Lei do Desejo" (1987) que parecia ter encerrado a sua fase mais intimista e desgarrada: os "amores loucos" até à morte cruzam-se, assim, com mediações fílmicas sem medida; a obra de Almodóvar voltou aos rumos de uma experimentação de série B, sem abdicar de conquistas representativas, ainda e sempre numa coerência exemplar.

o mais negro.

Trata-se, com efeito, do mais negro dos seus filmes, depois de "A Lei do Desejo": não há vestígios de felicidade, não há heróis, nem comédia que se não resolva em esgar e em perturbação. As marcas do franquismo aparecem como estigma inultrapassável, sem a esperança da nova geração que marcava o final de "Em Carne Viva", nem o refúgio num "kitsch" transfigurado, a partir de Douglas Sirk ou Rainer Werner Fassbinder. Quem espreita agora é o cínico maior do cinema americano clássico, o Billy Wilder de "Pagos a Dobrar", exposto em cartaz na cena do cinema que serve de metáfora total.

Dito isto, não podemos ignorar que o alvo do "ataque" directo é a instituição religiosa concentracionária, esteio do fascismo espanhol e responsável pela "má educação" do título, que o "tema" é a pedofilia, tomada como mal e como metonímia de um sistema infame. Só que esta ponta do icebergue narrativo depressa alastra à consideração de uma condição humana inquinada pelo desrespeito pelo indivíduo e pelo colectivo de bem maior extensão. "La visita", o labiríntico conto que serve de pretexto ao filme dentro do filme, constitui projecto antigo agora retomado, mas o tratamento que lhe é dado desconcertou uma certa crítica, interessada, sobretudo, no desconchavo das emoções e no excesso dos sentimentos exacerbados. "Má Educação" assume-se como uma espécie de "A Lei do Desejo" congelado, cerebral, milimetricamente controlado.

Este congelamento de formas, ao contrário de funcionar como óbice, atinge zonas inéditas no seu pequeno microcosmos representacional: tira-nos o tapete de debaixo dos pés, obriga-nos a ler o filme como uma série de fingimentos sem redenção, reproduz duplos num jogos de espelhos sem fim, quase paredes meias com as aberrações de degenerescências genéticas do naturalismo "à la Zola". Mais uma vez, não por acaso, na cena dos cartazes de filmes, ao lado de "Double Indemnity/Pagos a Dobrar" aparecem os de "La Bête Humaine", de Jean Renoir, e de "Thérèse Raquin", de Marcel Carné, adaptações paradigmáticas de Émile Zola.

Em "Má Educação", contudo, existe crime sem castigo, vileza sem remorso, ambição sem mitigada redenção: o irmão que se apodera da personagem que matou, acaba por reconstituir no filme o seu acto, escapando-lhe (apenas) a encenação. A arte imita a vida que não é vida, porque finge sê-lo, e dissolve-se no vazio da representação. Nada possui já referentes palpáveis: o cinema é morte e desejo de morte, com implacáveis leis e insondáveis mistérios.

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