Sobriedade e bom senso

Adaptando o romance homónimo de José Rodrigues Miguéis, "O Milagre Segundo Salomé" não é a primeira experiência de Mário Barroso na realização mas é o seu primeiro filme como realizador a ser estreado comercialmente.

"O Milagre Segundo Salomé", cuja estreia no dia 13 de Maio é, ao mesmo tempo e conforme o ponto de vista, muito apropriada ou muito desapropriada (não haverá ninguém para gritar à blasfémia ou a capacidade de escandalização está a tornar-se selectiva?) é um filme de época, uma "period piece" para quem prefira a expressão inglesa, que nos leva ao ano de 1917, tempos da Primeira República, curiosamente tempos pouca vezes reconstituídos pelo cinema português. Junta-se 1917 a 13 de Maio e todos os caminhos vão dar a Fátima e ao milagre - que cá está, segundo Salomé. O livro de Rodrigues Miguéis saiu em 1975, a temperatura era demasiado quente para escândalos religiosos. Mas agora que isto está tão frio, vá lá, (mais) um escândalozito com um filme português, "anyone"? Ou um ecrã negro incomoda mais que uma p... confundida com a virgem?

Brincamos (com o fogo, se calhar), mas "O Milagre Segundo Salomé" deve escapar-se dessas fúrias, até porque é um filme que não corresponde nem aos gestos nem aos modos do cinema "intelectual" e "artístico" (sic) que o grosso do público português abomina mais do que a blasfémia. Apontado ao "meio", a um cinema que é, primeiro do que tudo, um cinema narrativo com histórias e personagens, exala segurança por todos os poros - e é um bom exemplo de como, no cinema português, e glosando alguém cujo nome mais vale não citar (era outro tempo e outro contexto), a questão não está na oposição entre o "cinema comercial" e o "cinema artístico", mas, simplesmente, entre o "bom cinema" e o "mau cinema".

Este é um filme que se sabe adequar aos meios, e que os sabe adequar a ele próprio, que, dito de outra maneira, escolhe a guitarra consoante as unhas. No capítulo reconstituição histórica, por exemplo, o filme de Mário Barroso é de uma irrepreensível sobriedade e bom senso, que consegue ser eficaz sem precisar de trilhões de figurantes, e que consegue um mínimo de espectáculo sem que o realizador precise de se tomar por Visconti.

Mas, sobretudo, é um filme que não precisa de se render imediatamente à televisão, que consegue manter a subtileza narrativa e a tensão dramática através de uma gestão dos tempos narrativos e da planificação que preservam uma respiração de cinema.

Isso vê-se desde o princípio - da cuidadosa "mise en place" de personagens e situações, simples mas sem falhas, ao desenvolvimento da narrativa, com tudo certo no lugar certo, sem que o lugar certo seja necessariamente o lugar óbvio. E vê-se no fim, onde há uma ideia de clímax muito bem traduzida, sendo em particular a caminhada para o "milagre" (e o "milagre" propriamente dito) bastante bem resolvida, sem se desperdiçar nada do "capital emocional". Os actores são justos, dos mais conhecidos (Nicolau Breyner ou Paulo Pires, que deve ter aqui o seu melhor papel em cinema) às revelações (as miúdas do bordel, com destaque para a protagonista Ana Bandeira).

Não é preciso muito mais para que se dê a empresa por bem sucedida.

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