O futebol e a revolução

Edgar Pêra em programa duplo, com dois filmes que se instalam naquela linha de contornos dúbios entre o documentário (ou o "filme sobre o real") e o exercício de manipulação audiovisual onde quase sempre aconteceu o melhor do seu trabalho. E qualquer dos filmes é altamente estimulante, sobretudo numa perspectiva de "des-naturalização", não só do "real" mas também das imagens e dos sons que dele derivam. De resto, dir-se-ia que esse é o verdadeiro objecto do trabalho de Pêra, mais do que o "real".

Para "És a Nossa Fé", filme sobre futebol e adeptos de futebol, talvez se justifique o emprego de algumas metáforas especializadas. Diríamos assim que "És a Nossa Fé" nos mostra um Pêra cheio de auto-confiança, com uma defesa seguríssima e um meio-campo possante e criativo, mas com fraquezas na linha de ataque - é um problema bem português, costuma-se dizer, a dificuldade em convocar o "killer instinct" suficiente para rematar à baliza e resolver o jogo. Se há, de facto, algo a apontar a "És a Nossa Fé", é uma relativa inconsequência, ou vá lá um resultado demasiado tangencial para a qualidade do jogo produzido. É um filme divertido, num registo lúdico de cumplicidade para com a "festa", simultaneamente no meio dos adeptos e apontado a eles: parte substancial das imagens foi colhida durante (ou antes e depois) a final da Taça de Portugal de 2002, disputada entre o gigante Sporting e o "underdog" Leixões. O olhar de Pêra foca-se nessa diferença de "classe", entre a aristocracia e o povo, e nas diferentes (?) maneiras de vibrar e sofrer de cada uma, como se se tratasse de registar um sentido de comunidade e a ocasião da sua manifestação. Espécie de contracampo de uma transmissão de futebol, com as câmaras apontadas para a assistência, acaba por assumir uma vocação "antropológica", retrato de um povo no momento da evasão. Pena que o filme pareça não querer ultrapassar as conotações religiosas do cerimonial futebolístico, esgotando-se numa comparação que é um dos clichés mais gastos do assunto em causa.

O outro filme, uma curta com cerca de vinte minutos, é mais antigo. Foi realizado em 2000, e é uma montagem de imagens e sons associados ao 25 de Abril de 1974. "Associados", porque não são só imagens e sons desse dia nem dos dias seguintes que alimentam o trabalho de Pêra, mas também dos dias "anteriores" (programas de rádios, Marcello Caetano ou Franco Nogueira na televisão, etc). Curto e incisivo - e aqui sim, pleno de "killer instinct" - é um dos "finest moments" da obra de Pêra. Exercício de recontextualização audiovisual, "25 de Abril - Uma Aventura para a Demokracia" não se limita a ser o filme evocativo que todas as televisões fazem todos os anos para a efeméride. Dir-se-ia que, como no filme do futebol, há uma questão cultural, quase antropológica, a presidir, bem patente no olhar sobre o "povo", sobre os anónimos individualizados ou massificados. Mas dir-se-ia, sobretudo, que é um filme construído sobre uma elipse temporal: a que liga o 25 de Abril às imagens contemporâneas captadas na altura da rodagem, que aparecem no fim articuladas com uma voz que grita que "isto ainda não acabou" (ou que "isto ainda é só o princípio", seja como for o sentido é parecido). Filme cifrado mas sem "chave", é uma brilhante demonstração de como ainda é possível tratar o 25 de Abril sem o fechar em meia-dúzia de clichés (sejam eles revolucionários ou meramente evolucionários).

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