Fantasmas à Procura de História

Jeanne Waltz possui um interessante currículo como realizadora de curtas-metragem, que culmina com "As Sextas-Feiras da Bailarina Gorda", em que os segmentos ficcionais apontavam já para o desejo de uma longa-metragem, pelo modo como construía personagens, com uma intenção e uma densidade dignas de nota.

Quando aborda este "Daqui p'ra Alegria", preside à elaboração do projecto um olhar sobre Lisboa e sobre os habitantes dos subúrbios que procura, a todo o custo, evitar as armadilhas do bilhete-postal, incidindo numa relação complexa entre campo e cidade.

Embora tudo comece com planos sucessivos de uma benigna selva urbana e uma tentativa de suicídio gorada pelo acender de uma luz, espécie de "janela indiscreta" que sinaliza a vida, muito pouco em "Daqui p'rá Alegria" passa por coodenadas "realistas". Ou seja: se a moldura é o real nu e cru das cidades satélites de Lisboa, o desenraizamento familiar ou a falta de horizontes em vidas sem rumo, existe sempre uma espécie de contaminação onírica, que tudo transforma em bonecos de luz. O grande exemplo desta dupla dimensão aparece-nos nas belíssimas sequências nocturnas da distribuição dos jornais, banhadas numa luz espectral, salientando, inclusive, um carácter iniciático, mais uma quotidiana e maquinal actividade de sobrevivência.

Aliás, esta poetização do real, a lembrar, por vezes, alguns dos primeiros filmes de Rainer W. Fassbinder, constitui, em simultâneo, a grande mais-valia deste filme e a sua mais exposta fragilidade: o "flash-back" e a história do circo, com os simbólicos leões, parece possuir a função de ligar os fragmentos de uma história lacunar, fornecendo-nos pistas, mas acaba por acentuar, sobretudo, as fracturas de um discurso à procura de si mesmo.

Algo abandonadas ou apenas em esboço ficam personagens, incluindo a mais forte de todas, a da "aluada" menina-mulher de Rita Durão. Constantemente interrompida fica a solidão habitada das três meninas, quase mais fantasmas (ou jovens Parcas) do que seres reais, embora o filme insista em conotá-las com a sordidez mitigada dos pequenos "roubos". Mesmo a personagem do protagonista (será que existe protagonista? E essa indecisão será voluntária?), que encontra em Dinarte Branco a vulnerabilidade ideal, parece planar sobre as coisas numa estratégia de sonambulismo, a parar o filme e as suas fragmentadas peripécias num tempo sem tempo. E, no entanto, sequências como a da igreja, ou a de tentativa de engate parecem aparecer a contracorrente, como se o confronto entre uma espécie de estranheza do real e um desejo de superação "sobrereal" fosse irresolúvel, mas contaminasse cada plano.

Esta constante experimentação com os fios da narrativa possui um lado tocante, mas, a certa altura, arrisca-se a entrar numa quase esquemática repetição, que a realizadora nem sempre parece dominar, apesar de todo o rigor com que filma corpos e edifícios, espaços fechados e tempos vazios. Falta, talvez, a "Daqui P?ra Alegria" uma maior "alegria" ou uma maior "tristeza", que o resgate de alguma frieza de um olhar de "nouvelle vague", chegada tarde demais.

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