O mundo perdido da Disney

A Walt Disney - templo da animação tradicional - completa 75 anos e prepara-se para deitar fora os lápis, canetas, aguarelas e folhas de papel que fizeram nascer sucessos como "Branca de Neve", "Pinóquio" ou "Cinderela". Uma surpresa? Nem por isso... Há muito que o cinema de animação dá sinais de mudança. A Pixar e a Dreamworks têm provado que a animação pode encontrar nos computadores um novo mundo de possibilidades ficcionais - e de sucessos de bilheteira.

"Kenai e Koda" ("Brother Bear"), de Aaron Blaise e Robert Walker, que conta a história de um jovem índio que deseja desesperadamente ser homem e é transformado em urso (uma "piscadela de olho" ao universo kafkiano?), será por isso uma das últimas oportunidades para ver um filme feito "à moda antiga" pela Disney. Que é o mesmo que dizer criado a partir de milhares e milhares de desenhos feitos à mão por batalhões de artistas.

O filme, que chegou às salas de cinema dos EUA antes do final do ano passado e alcançou receitas de bilheteira razoáveis (70 milhões de euros), foi nomeado para os Óscares na categoria de melhor filme de animação. Mas, a provar que o futuro passa pela animação computadorizada, acabou por perder a estatueta dourada para o rival "À Procura de Nemo", o filme mais visto de 2003 (só nos EUA somou 276 milhões de euros e ao todo arrecadou quase 2 mil milhões de euros).

Se a conversão dos filmes de animação em "megabytes" parece inevitável, a verdade é que isso não agrada a todos: "Os filmes feitos a duas dimensões são o 'background' da animação. Detestamos ver chegar o seu fim, mas é o que a indústria cinematográfica e o público estão a ditar", desabafaram os realizadores de "Kenai e Koda", durante a apresentação europeia do filme à imprensa, em Lausanne, Suíça.

O tom dominante do evento foi, aliás, de desilusão. O objectivo era falar do filme, mas a conversa, qual bebida entornada, estava sempre a "pingar" para o mesmo lado: o fim da animação tradicional e o anúncio do fecho do estúdio da Disney na Florida. Nada mais, nada menos, que a "casa-mãe" de "Kenai e Koda". Antes da polémica, vamos ao filme. Acção!

de volta aos clássicos.

Há dez mil anos, na América do Norte, em plena Idade do Gelo, o índio Kenai acaba de receber dos "Grandes Espíritos" um totem que é um urso e simboliza que o seu destino é a descoberta do amor. Kenai é o mais novo de dois irmãos - Sitka e Denahi - e sente-se frustrado com a premonição, porque "ser Homem não tem nada a ver com amor". É então que Sitka (o mais velho) morre, na tentativa de salvar os seus irmãos do ataque de um urso, e o ódio apodera-se de Kenai, que resolve perseguir o animal. Quando finalmente o consegue matar, é ele próprio transformado em urso.

Ironia das ironias, Kenai é agora perseguido pelo seu irmão do meio, Denahi, e tem de procurar Sitka, responsável pelo feitiço, na montanha "onde o sol toca a Terra". Desesperado, Kenai conhece um urso bebé chamado Koda, que se perdeu da mãe e espera reencontrá-la na "desova do salmão" - uma espécie de reunião anual dos ursos, perto da "montanha mágica". Koda oferece-se para ensinar o caminho a Kenai, que começa assim a descobrir um novo mundo...

"Kenai e Koda", que marca a estreia de Aaron Blaise e Robert Walker na realização (há 14 anos que são animadores da Disney, como "Mulan", de 1998, ou "O Rei Leão", de 1995, nasceu há seis anos e é uma ideia original do estúdio da Florida. Uma "espécie de filho", diz Blaise, que "queria fazer um filme que fosse uma aventura", mas também que "reflectisse sobre a importância de conseguir ver o mundo a partir de outra perspectiva".

O argumento foi reescrito centenas de vezes. Ao longo de meses e meses, os realizadores "assaltaram" bibliotecas e livrarias à procura de histórias, mitos e lendas que funcionassem como inspiração. Que "o maior desafio num filme de animação é criar uma história diferente, única". As primeiras versões de "Kenai e Koda" recuperavam elementos dramáticos do "Rei Lear", de Shakespeare. No final, o filme tornou-se numa história sobre amizade e tolerância entre homens e animais. Porque, diz Walker, "descobrimos que quase todas as culturas têm histórias que falam da transformação de homens em ursos e defendem que os animais são apenas pessoas com uma roupa diferente".

Com o objectivo de "resgatar o espírito dos clássicos", a Disney convidou Phil Collins a assinar a banda sonora. O músico, que se prepara para aquela que chama de "first final tour" e espera dar um concerto em Portugal, já participara em "Tarzan" (1999), que lhe valeu o Óscar de melhor canção original. "Houve uma espécie de compromisso de que se faria um filme mais tradicional", diz o produtor Chuck Williams. "Afinal, qual foi a última vez que se realizou um filme de animação sobre valores de família e com música criada para o efeito? A Disney não tem feito, a Pixar e a Dreamworks também não. Será que estamos condenados a que Britney Spears seja a nova princesa das crianças?"

Em "Kenai e Koda" não é esse o caso. Mas, ao contrário do que a Disney nos habituou, aqui o herói é um "anti-herói" - Kenai vê os ursos como "monstros" e, sem saber, acaba por matar a mãe daquele que se tornará o seu melhor amigo, Koda... Uma maior humanização das personagens? "Sem dúvida. Numa época em que a guerra é cada vez mais uma realidade, é importante transmitir às crianças que não há bons, nem maus, mas sim pessoas que erram e merecem ser perdoadas."

uma pintura a óleo.

As primeiras imagens de "Kenai e Koda" são escuras, como se estivéssemos a ver a pintura de um dia cheio de nuvens no céu que teimam em não deixar passar o sol. Mas o "Inverno" dura pouco. Assim que o jovem índio é transformado em urso, surge a "Primavera" - a tela abandona os tons de cinzento e azul-escuro, revelando uma intensa "palette" de cores. Uma forma de fazer com que, à semelhança do que acontece com Kenai, o espectador também "mude o seu ângulo de visão", explica o realizador Robert Walker.

As montanhas, vulcões e animais do Alaska e Wyoming foram as "paisagens" que inspiraram as dezenas de criadores que, como aventureiros, resistiram ao frio e a outras condições adversas para, "in loco", criarem "Kenai e Koda". Traço a traço, cor a cor, sempre com o objectivo de recuperar o espírito das grandes pinturas românticas de Albert Bierstadt, que no século XIX imortalizou as Montanhas Rochosas e o Vale de Yosemite, na zona oeste dos EUA.

"Cada lugar, pessoa ou animal tem uma história única, que quando é pintada faz nascer um forte sentimento de real, mas também de magia", diz Walker. "É isso que é singular neste filme e, de modo geral, na animação tradicional." A opinião é partilhada por Blaise: "Quando vemos um quadro, temos sempre a sensação de que há algo para além dos limites da tela. Nos filmes criados a partir de desenhos acontece o mesmo. O mundo parece transcender sempre o que a câmara consegue captar."

Como seria "Kenai e Koda" em animação computadorizada? A resposta é imediata: "Não era possível fazer este filme de outra maneira", diz Walker. "É uma espécie de 'moving painting'. O calor físico da mão sente-se em cada imagem, é como se estivéssemos a observar uma pintura a óleo. E isso é algo que os computadores nunca conseguirão recriar." Robert Walker tem pouco mais de 40 anos e, assim que acaba de falar, olha para os jornalistas com um sorriso matreiro. Sabe que acaba de lançar a controvérsia.

"bad times".

A apresentação de "Kenai e Koda" à imprensa aconteceu em Janeiro e o anúncio do fecho do estúdio de animação tradicional da Disney na Florida era um assunto recente. Ao todo, mais de 280 trabalhadores tinham sido despedidos ou integrados noutras divisões da empresa em Los Angeles, como é o caso do produtor, dos realizadores e da maioria dos animadores. O ambiente era, por isso, de tensão. Sentia-se que os realizadores vinham preparados para responder às perguntas, algumas até indiscretas, dos jornalistas. Mas não tentaram disfarçar sentimentos. "É claro que não gosto que a Disney esteja a acabar com a animação tradicional", diz Blaise. "Um dia ainda vou voltar a fazer filmes à minha maneira."

Aaron Blaise deve ter a idade de Walker. Traz vestida uma "T-shirt" cor de laranja e umas calças de ganga. Tem o cabelo loiro, comprido, solto. E quase que se adivinha um passado "hippie", provavelmente perdido no meio das montanhas a fazer o que mais gosta - desenhar. Agora, o futuro é outro: os computadores. "Toda a equipa que vai para Los Angeles já está a receber formação em computação gráfica e não tardará muito a que estejamos ao nível dos nossos concorrentes", graceja.

Blaise refere-se à Pixar. Mas sem cinismo. O que o preocupa é "a Disney ter resolvido acabar com a animação tradicional". Visivelmente mais à vontade com a imprensa do que Walker, não se furta a críticas à empresa que criou o Rato Mickey, nem a assumir que se avizinham "bad times". "O computador torna tudo mais artificial e faz com que as personagens sejam muito mecânicas. Há um sentido de real que se perde e põe em causa a magia dos filmes."

Os realizadores de "Kenai e Koda" reconhecem, no entanto, vantagens na animação computadorizada - por exemplo, o pesadelo da criação e coordenação das cores chegaria ao fim com a sua codificação num computador. Apesar de aliciante, o facilitismo de certas técnicas não os convence. "A animação tem de fazer com que os adultos e as crianças acreditem no que vêem para poderem continuar a sonhar", diz Walker. Blaise acrescenta: "O mundo do desenho é o verdadeiro mundo do sonho."

a, agora, rival.

Há 75 anos, quando Walt Disney criou o Rato Mickey disse que fazia "filmes para crianças e para a criança que há dentro dos adultos". Assim foi durante anos e anos, com a magia do filão da infância a reabrir-se sempre que a Disney lançava um novo filme. "Pinóquio" (1939), "Fantasia" (1940), "Dumbo (1941), "A Gata Borralheira" (1950), "A Pequena Sereia" (1989), "A Bela e o Monstro" (1991) ou "O Rei Leão" (1995) seduziram gerações e invadiram o imaginário colectivo da humanidade.

Contudo, desde "O Rei Leão" que a Disney não consegue ter um verdadeiro sucesso de bilheteira. Têm sido apontadas várias razões - "está ultrapassada", "é retrógrada", "não se reinventou". Em contrapartida, o estúdio Pixar (que mantinha uma parceria com a Disney e já anunciou que não vai renovar o contrato) tem somado êxitos atrás de êxitos com o uso de computação gráfica. O primeiro foi "Toy Story", em 1995, e deu início a uma verdadeira revolução da animação.

A Dreamworks substituiu os lápis e papéis por computadores e os contos de fadas tornaram-se cada vez mais anticontos de fadas (que a verdadeira reanimação da animação também se faz ao nível das narrativas...). É o caso de "Shrek" (2001) da Dreamworks ou "Monstros e Cª" (2001) e o recente "À Procura de Nemo" (2003) da Pixar, que além de receberem o aplauso da crítica, também encheram salas de cinemas. Com miúdos e graúdos.

Quase dez anos depois, e ao que parece sem alternativa, a Disney converte-se por fim à animação computadorizada. O realizador Aaron Blaise reconhece-o: "O sucesso da Pixar está a fazer com que toda a indústria de animação mude o seu modo de fazer filmes. Somos obrigados a seguir as leis do mercado." Mas será que tudo se resume a uma questão de técnica? "Claro que não. Temos de admitir que a Pixar faz óptimos filmes. Eles não são só bons em termos técnicos. As histórias são fantásticas."

"Kenai e Koda" será, por isso, um dos últimos "clássicos" do templo da Disney, que entretanto já lançou "Teacher's Pet" e se prepara para estrear "Home on the Range", que assinalará o fim da era da animação tradicional. Pelo menos por agora... Antes de terminar a conversa com os jornalistas na Suíça, Blaise fez questão de sublinhar a sua convicção de que "o futuro passará por um regresso à animação tradicional".

"Assim que passar a novidade da animação computadorizada, haverá uma contaminação entre os dois tipos de animação e isso é que será estimulante. As possibilidades serão ilimitadas."

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