Mundo fantasma

Ficção científica, "film noir" e expressionismo alemão são as peças que formam um "puzzle" construído, segundo uma lógica "kafkiana", por um realizador de culto, Alex Proyas. É "Cidade Misteriosa", reflexão futurista sobre a natureza humana.

Nascido no Egipto, filho de pais gregos, Alex Proyas mudou-se para Sydney aos três anos e foi na Austrália que cresceu e se formou. Com um "background" tão diverso e exótico assim, quase apetece dizer que o realizador de "Cidade Misteriosa" (1998) se arriscava a ter um futuro singular. E, de facto, poucos se poderão gabar de, com uma carreira cinematográfica relativamente curta, ter à sua volta um culto tão fervoroso.

"Artista" e "visionário" são epítetos que costumam sair da boca dos seus mais fiéis admiradores e a verdade é que, desde muito cedo, Proyas recebeu o carimbo de "prodígio": ainda adolescente, viu o primeiro trabalho, mescla de animação e imagem real intitulada "Groping" (1980), conquistar o prémio de Melhor Curta-Metragem nos festivais de Sydney e Londres.

Pareciam lançadas as sementes para uma rápida ascensão no mundo do cinema, mas Proyas acabou por passar quase o resto da década a dirigir vídeos musicais, solidificando a reputação como um dos grandes estetas nesse campo. Com a viragem para os anos 90, começou também a assinar campanhas publicitárias, que lhe trouxeram maior projecção internacional. Resultado: convite de Hollywood para comandar a adaptação de uma BD, "O Corvo" (1994), por muitos considerada a primeira longa-metragem do realizador, apesar de este já contar no currículo com um quase invisível "Spirits of the Air, Gremlins of the Clouds" (1989).

Veículo para a que era apontada como a próxima estrela do cinema de acção - Brandon Lee, filho de Bruce Lee -, "O Corvo" viu-se abalado pela trágica morte do protagonista, poucos dias antes do final da rodagem. Cinismos à parte, o que parecia um azar dos diabos (o filme até esteve perto de não ser terminado), resultou num benefício a longo prazo: as circunstâncias misteriosas (e perversamente irónicas, pois o actor interpretava um "anjo vingador" que voltava da tumba...) que rodearam a morte de Lee - alvejado por uma bala verdadeira saída de uma arma que deveria ter apenas pólvora seca - ditaram que o desequilibrado exercício de estilo recebesse mais atenção do que na verdade mereceria. Os paralelos que logo se traçaram entre os enigmáticos desaparecimentos de pai e filho contribuíram para que se falasse numa "maldição" da família Lee e ajudaram a fazer crescer o interesse mórbido pelo projecto, que entretanto ganhara a aura de "filme-maldito".

Nascia assim um inesperado êxito comercial (a banda sonora muito "cool", com The Cure, Violent Femmes, Nine Inch Nails ou Rollins Band, também terá culpas no cartório), incensado por alguma crítica. De qualquer forma, apesar dos pontos fracos - fragilidades de argumento e montagem "videoclipesca" -, sobressaía um certo fulgor, nomeadamente na capacidade do realizador em criar paisagens urbanas de decadência e ambientes negros de perturbação, tudo embrulhado num "look" entre o industrial e o gótico (era notória a influência de Poe). Virtudes essas que seriam transportadas - e aperfeiçoadas - para o "opus" seguinte, momento decisivo para Proyas na consolidação do estatuto de "autor de culto".

Caldeirão de referências

Filme declaradamente mais ambicioso do que o antecessor, "Cidade Misteriosa" constitui uma experiência visual única, na qual Proyas dá largas à sua cinefilia. Os universos da ficção científica, do expressionismo alemão e do "noir" fundem-se numa intriga que apresenta a lógica de um pesadelo "kafkiano": um homem (Rufus Sewell) acorda, sem saber como nem porquê, num quarto de hotel e é acusado de uma série de assassinatos que pode ou não ter cometido; amnésico, parte em busca de si próprio, confrontado com o absurdo de um processo sem causa. O que começa então como um "thriller" de mistério, evolui para uma fantasia futurista com a entrada em cena dos "Strangers", uma raça de alienígenas que, além de perseguir também o protagonista, adormece, todas as meias-noites, os habitantes de uma metrópole em perpétua escuridão. São peças de um "puzzle" labiríntico, que à partida não encaixam, cabendo ao espectador ordená-las para chegar à solução. Muito do fascínio de "Cidade Misteriosa" reside precisamente aí, na recusa em entregar logo o jogo. "O público está farto de narrativas simplistas e, se lhe dermos algo um pouco mais interessante, apreciá-lo-á", disse Proyas, que mesmo assim foi obrigado pelo estúdio a incluir uma voz off inicial "explicativa", para não deixar completamente às apalpadelas quem visse o filme (talvez por isso, os fãs mais arreigados prefiram os primeiros momentos com o som desligado...). Por outro lado, merece igual destaque a forma como as várias matrizes influenciadoras se plasmam num todo coerente, simbiose que salta à vista na construção dos cenários e personagens. No primeiro caso, a cidade onde decorre a acção cita directamente a "Metropolis" de Fritz Lang, bem como todo o legado dos mestres expressionistas germânicos dos anos 20 - do sentido de distorção enviesada à interacção entre luz e sombra -, mas filtra-os através do mundo urbano e nocturno do policial americano da década de 40, numa amálgama de períodos e estilos, intemporal e desconcertante. No segundo caso, se as personagens do detective "hardboiled" de William Hurt e da mulher infiel de Jennifer Connelly são ecos óbvios do "noir", os vampíricos "Strangers" remetem para o "Nosferatu" de Murnau, enquanto o psiquiatra aleijado de Kiefer Sutherland (fantástica criação de um actor injustamente menosprezado, do mais entusiasmante que o cinema americano tem para oferecer) surge como um cruzamento entre o "Dr. Caligari" da obra-prima de Robert Wiene e o Peter Lorre de "Matou". Tudo isto poderia não passar de "esperteza saloia", estilo sem substância, se a sofisticação plástica não estivesse ao serviço de uma história imaginativa polvilhada de ideias delirantes. É que quando o filme de Proyas chega ao fim e o mundo fantasma, realidade manufacturada, por ele montado se abre finalmente aos nossos olhos, percebemos que acabámos de assistir a uma sedutora parábola existencialista, reflexão complexa sobre a natureza humana. Ainda para mais, com o bálsamo de - não obstante as questões levantadas: controlo de pensamento, deformações da percepção, conflitos de identidade, memória e livre arbítrio - nunca sucumbir ao peso da pretensão (ao contrário da saga "Matrix", de quem é um claro precursor). Não será de espantar se estiver encontrado um dos "cult movies" de cabeceira dos anos 90...

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