Manobras (i)legais

Salvaguardadas as distâncias, os romances de John Grisham funcionam um pouco como os de Stephen King: invariáveis "best sellers" a que Hollywood tem recorrido com frequência. Uma inclinação que, fora as razões óbvias (é mais fácil pegar em material já existente), se poderá explicar pelo facto de ao universo do escritor estar associada uma fórmula perfeitamente definida, que já atraiu gente respeitável (Francis Coppola, em "The Rainmaker") ou nem por isso (Joel Schumacher, com "O Cliente" e "Tempo de Matar").

Que fórmula é essa? O cruzamento entre o "courtroom drama", onde por norma se discute uma importante "questão social", e o "thriller", que vai correndo fora da sala de audiências. É precisamente no baralhar destas coordenadas que reside a principal virtude de "O Júri", permitindo ao filme de Gary Fleder assumir-se como um dos mais sólidos "thrillers jurídicos" a sair da obra de Grisham. Dito de outro modo, na balança da intriga pesa menos o que se passa no tribunal do que o que acontece para lá dele, numa inversão da lógica habitual nestas adaptações, o que tem como agradável efeito o "suavizar" do tom moralista e demagógico com que costuma ser tratado o "tema" em causa (neste caso, o controlo de armas).

O filme abre com um massacre a tiro num escritório e o suicídio do responsável, ex-empregado da firma. Passados dois anos, a mulher de uma das vítimas processou a companhia autora da arma do crime, na esperança de que esta seja condenada como cúmplice de homicídio por não obrigar os revendedores a cumprir os regulamentos referentes à venda de artigos mortíferos. Assunto potencialmente árido se "O Júri" se detivesse nos mecanismos do "filme de tribunal". Mas, ao deslocar o centro da acção para o que se passa por trás do julgamento, o argumento aposta num recuo que possibilita um olhar mais interessante (e cínico) sobre as contradições do sistema de justiça americano.

Para tal, é crucial o papel secundário assumido pelos advogados, que (ao contrário do normal em Grisham) aqui não passam de meros joguetes de outros intervenientes, bastante mais influentes, apesar de operarem nas sombras. São os consultores de júris e, entre eles, avulta o reptilíneo Rankin Fitch (Gene Hackman, em grande forma), espécie de "papão" no mundo do Direito. Contratado pela empresa acusada para garantir uma sentença favorável, o seu lema é: "Os julgamentos são demasiado importantes para se deixarem nas mãos dos júris"...

As tácticas pouco escrupulosas incluem chantagem, suborno ou vigilâncias ilegais e a melhor sequência do filme ilustra na perfeição esse "modus operandi": chega logo no início, quando, no interior de um covil secreto, Fitch vai comunicando ao advogado de defesa quais serão os melhores membros do júri entre os vários candidatos, a mesma escolha que, no tribunal, o advogado de acusação (Dustin Hoffman, mais contido do que é costume) enfrenta com métodos mais tradicionais.

É verdade que os "maus" - Fitch e a indústria de armamento, que surge demonizada - são mesmo maus, mas o motor do filme não está numa batalha a preto e branco entre estes e os "bons", antes no duelo de astúcias que opõe Fitch a dois outros manipuladores: um dos jurados (John Cusack, num papel perfeito para a sua "persona" de "espertalhão" charmoso) e a misteriosa companheira (Rachel Weisz, figura que traça tangentes com o "noir", aproximando-se da arquetípica "femme fatale"). São, pelo menos durante a maior parte do tempo, personagens "cinzentas", "outsiders" com motivos obscuros e passado secreto, que vão também "trabalhar" o júri e "oferecer" o veredicto à parte que pagar mais.

Se o final parece restaurar uma ordem perdida, não deixa no entanto de estar impregnado de ambiguidade, pois dificilmente se poderá desligar o resultado de tudo o que o antecedeu, da forma como se atingiu. De qualquer modo, para além do elenco notável (que junta pela primeira vez Hackman e Hoffman), realce-se ainda a realização eficaz de Fleder, com adequado sentido de ritmo e combinando agilmente os múltiplos "subplots". Em suma, um divertimento q.b. que não defraudará quem for à espera disso mesmo.

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