Fora de água

Aparentemente, neste "O Grande Peixe" estão todos os elementos que nos habituámos a ver no cinema de Tim Burton. Uma atmosfera geral de fábula fantasiosa, ambientada em territórios artificiosos e mágicos, povoada por criaturas bizarras e, nas mais das vezes, solitárias.

Há até um pouco mais do que os elementos habituais - há uma família inteira, filmada de "dentro" e não como se fosse contemplada através de uma vitrine (era o que sucedia, por exemplo, em "Eduardo Mãos-de-Tesoura"), e há uma ideia de comunidade realizada na sua plenitude, coisa que os filmes de Burton ("Eduardo" volta a ser um bom exemplo) raramente desenharam desta maneira calorosa e interior.

E no entanto...

E no entanto, sejamos muito francos, "O Grande Peixe" é uma enorme decepção. Provavelmente, é o pior Tim Burton de sempre. E provavelmente é o Tim Burton mais indistinto de sempre, o seu filme mais "normal" e mais anónimo - aliás, a mesma mosca parece ter mordido a Danny Elfman, que assina uma banda sonora enfadonha e sem ponta de imaginação (mas que deu, vá-se lá saber porquê, para garantir uma nomeação para os Óscares).

Vê-se "O Grande Peixe" e fica-se com a sensação de que é um filme de um realizador qualquer que se teria apenas inspirado em Burton, ou um daqueles projectos que, sendo pensados e preparados por um realizador, acabam por ser dirigidos por outro. É uma graça fácil, mas este "Grande Peixe", na obra de Burton, está completamente fora de água. Falta, parece-nos, e por assim dizer, "textura". O filme é monodimensional em excesso, linear em demasia. É a história de uma reconciliação familiar - um pai (Albert Finney, "bigger than life" por natureza e estatuto, a tentar ser "even bigger") está à beira da morte e o filho (Billy Crudup), com quem manteve uma relação sempre distanciada, vem à sua cabeceira: a situação serve para que, num dispositivo onde o "flash back" é figura de eleição, Finney vá contando em episódios mais ou menos exagerados as passagens fundamentais da sua biografia (a personagem de Finney em jovem é interpretada por Ewan McGregor), num processo que levará o filho a rever por inteiro a ideia que tinha do pai.

Até aqui tudo bem - os relatos da personagem de Finney, que misturam alegremente factos e fantasia, "rigor histórico" e delírio ficcional, deixam caminho aberto para a entrada dos elementos "burtonianos" apontados no início. Mas há qualquer coisa que nunca entra, e essa, no limite, parece ser a raiz da nossa decepção. "O Grande Peixe" é monodimensional como nenhum filme de Tim Burton porque falta aqui uma componente fundamental (e habitual) do seu peculiar humanismo: uma dimensão trágica, se quisermos pôr assim as coisas, o delinear de um ruptura entre o indivíduo e o mundo que o cinema nunca serve para suturar mas apenas para pôr em perspectiva. Dos dois "Batman" a "Eduardo", de "Ed Wood" ao "Cavaleiro sem Cabeça", esse ricochete entre a sensação de pertença e o mais completo isolamento esteve sempre na génese do eixo mais profundo e mais fascinante dos filmes de Tim Burton - e aliás, era também visível no tão subestimado "remake" de "O Planeta dos Macacos", que Burton transformou em qualquer coisa próxima de uma peça shakespeareana sobre o poder e as paixões.

Em "O Grande Peixe", o realizador troca a solidão pelo calor do sentimento de pertença a uma família e a uma comunidade (e há até, através do retrato daquele lugarejo escondido aonde o protagonista às tantas vai dar, uma inesperada entrada em cena de um resquício de "americana"). Aquilo que nos outros filmes começava por ser um desejo, e que até se podia concretizar mas onde havia sempre lugar para que se mostrasse o seu reverso (e até mesmo o seu antídoto), toma aqui a cena por inteiro - numa metáfora lunar totalmente apropriada a Tim Burton, digamos que "O Grande Peixe" é um filme sem "lado escuro". Não surpreende, portanto, que no próprio arco das personagens se privilegie uma beatitude sentimentalista pouco habitual no cineasta - na sua lisura livre de quaisquer asperezas, olhamos para a personagem de McGregor/Finney e lembramo-nos, demasiadas vezes para nosso gosto, do humanismo ingénuo e em linha recta de um "Forrest Gump", por exemplo. Nalgumas cenas (mas em poucas, infelizmente), pressente-se o nosso bom velho Tim Burton a esgravatar a superfície; as cenas no circo, com o plano fundamental do "gigante" substituído a ir-se embora; os momentos com a bruxa Helena Bonham-Carter, em particular quando os miúdos veêm, nos olhos dela, o "filme" da sua futura morte; e, pelo delírio absoluto no tratamento de símbolos e "ícones", a sequência vietnamita, com o indescritível momento de "music hall" para as tropas comunistas.

Não salvam o filme, mas dizem que Burton não morreu, apenas adormeceu durante um filme.

Sugerir correcção
Comentar