Uma infinita tristeza

A obra de Woody Allen tem vindo a assumir, à medida que cada filme se vem acrescentar a um "corpus" coerente, quase a dimensão de um filme único, que se desdobra em tomos sucessivas, com inteligíveis rimas internas e remissões para vertentes diversas do seu talento.

Independentemente do maior ou menor acerto de um objecto em particular é da necessidade de uma visão de conjunto que se trata, unificada pela presença obsessiva de uma Nova Iorque física e idealizada e pela capacidade de insistemente interrogar a sua própria constância. Porque se trata de um autor, na definitiva acepção do conceito, cada novo filme vem, pois, trazer a urgência de uma "arrumação" e a possibilidade de uma revisão.

Assim, filmes outrora conotados com meras revisitas a universos alheios, ganharam, com o tempo, uma consistência e uma centralidade que convém realçar: "Interiors" (1978), muitas vezes considerado um "pastiche" de Bergman, venceu o teste do tempo e constitui peça fulcral do "puzzle" alleniano; "Stardust Memories" (1980), uma espécie de resposta pessoal a "Fellini 8 ", transporta para a universalidade da sua descontextualização cultural a essência de um processo criativo em constante devir.

Claro que os filmes de fusão (entre Bergman e Fellini, já com a originalidade incontestável do cineasta) permanecem intocados na sua "beleza útil": "Annie Hall" (1977), seleccionado pela Academia para o óscar da consagração (a partir daí, apenas o Allen argumentista e fabuloso director de actrizes mereceria igual distinção), constitui ainda referência para a crítica americana; "Manhattan" (1979) aplicava ao conjunto das suas reconhecíveis paranóias uma imagem de marca, unindo paisagem e música, psicanálise e humor, seriedade e paródia, uma matriz para futuros denvolvimentos e variações.

Com estas quatro obras sucessivas estavam lançados os alicerces para o edifício unitário e inacabado, deixando para trás o Woody Allen mais solitariamente "cómico", mestre da transformação do "gag" do burlesco: entre "O Inimigo Público" (1968) e "Sleeper" (1973), ficção científica ao invés, investida de furiosa iconoclastia.

Quando chegamos às últimas obras do catálogo alleniano, é ainda desta "pré-história" do seu mundo que devemos partir: "Vigaristas de Bairro" (2000) instrumentalizava a estratégia da sucessão de "gags" para apelar ao lado burlesco da sua desconstrução do mundo; "A Maldição do Escorpião de Jade" (2001) encaixava numa vertente passadista da memória ("Os Dias da Rádio", 1987) e na "menoridade" de um divertimento de formas codificadas, assumido enquanto tal ("Manhattan Murder Mystery", 1993); "Hollywood Ending" (2002) juntava o gosto pelo "gag" desconjuntado do início numa frágil (uma das mais vulneráveis propostas de todo o "corpus") colagem metaficção de "Stardust Memories" ou do magnífico musical, "Toda a Gente Sabe que te Amo" (1996).

sorriso amargo.

Que novidades traz o "opus 37" do catálogo Woody Allen, "Anything Else"? Nenhuma, na medida em digere, baralha e voltar a dar os dados conhecidos. Todas, se aceitarmos a premissa de que qualquer variação é um diferente contributo para o todo. À mente vêm, em nítida clareza, as rimas internas com "Maridos e Mulheres" (1992) e com "Poderosa Afrodite" (1995). Há mesmo uma explícita autocitação de uma piada (jogo de palavras) sobre judeus, tirada de "Annie Hall.

A interpelação ao público por parte da personagem de Jerry Falk, um estranho duplo jovem da eterna "persona" neurótica de Allen-actor, remete para "O Inimigo Público", mas também para "Balas sobre a Broadway" (1994) e para uma infinidade de jogos entre a ficção e uma imitação do real, de que "A Rosa Púrpura do Cairo" (1985) constitui, porventura, a experiência limite. A utilização do actor de "American Pie", Jason Biggs, desvela o modo como Allen incorpora uma imensa variedade de registos, com total coerência de resultados. O tom de comédia amarga sustenta-se, aliás, no confronto entre as limitações evidentes de Biggs e a versatilidade de Christina Ricci, aproveitando a estranheza do seu "facies" e a sua capacidade para se alhear dos conflitos, inerentes à trama, numa espécie de distanciamento "brechtiano".

Para a personagem de Woody Allen reserva-se o descontrolo em paralelo com o nervoso agente de Danny de Vito, presença já habitual de actor característico, em rábula facilmente identificável. Um dos lados mais interessantes desta ficção algo desconjuntada passa precisamente pela sua aparente ausência de linha condutora, de "enredo", no sentido restrito do termo. Toda a "história de amor", com "flash-backs" e excursos, parece construir-se ao sabor de associações livres, de lapsos freudianos, de desejos sublimados. Nem o encontro entre os dois "escritores" nem a amizade daí decorrente escapam a um onirismo febril, que permite ler o filme como um devaneio ou como a acumulação de impossibilidades narrativas.

Os detractores insistirão em que se trata de Woody Allen repetindo-se à exaustão, de modo preguiçoso e permitindo o filme anual "da ordem". Só que percorre este "Anything Else" - o próprio título original sugere esta procura da alteridade sem objectivo nem rumo - um sopro de infinita tristeza, como se o fim das relações, tantas vezes glosado nos seus filmes tivesse atingido um cansaço mortal, um abandono que já não permite reconstruções. Mesmo o mais óbvio "déjà vu" (os pavores do Holocausto, as neuroses, os psicanalistas desatentos, Central Park ou o medo da morte) se reveste de um sentido de desagregação, que não deve confundir-se, de forma simplista, com falta de "coisas para dizer".

O sistema alleniano atinge neste filme "low profile" (menor é conceito que se lhe não adequa) um ponto de não-retorno na circularidade de incomunicações. Woody Allen rejeita a "renovação", encerrando-se como a sua personagem que se recusa a admitir a perda, sendo internada numa clínica psiquiátrica. Por isso, cada vez mais se sai de um Woody Allen com o sorriso amargo de quem teve que engolir o riso.

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