Play it Woody, again

Woody Allen parece um "little man", cercado por um grupo de jornalistas num quarto do Hotel Des Bains, no Lido de Veneza. Não é preciso ser comediante para pensar que há aqui suficiente inspiração para piadas: o par de japonesas que acenam as cabeças em sincronia, com o seu riso miudinho, o jornalista italiano cuja única pergunta é, na verdade, uma não-pergunta.

Numa hipotética adaptação alleniana, a cena poderia ocorrer assim:

Jornalista italiano - Qual é a resposta?

Woody Allen - Qual é a pergunta?

Woody, dizem-nos, pode perder a cabeça com os jornalistas. Mas neste final de Agosto, e a meio de uma maratona de entrevistas no Festival de Cinema de Veneza, responde, tranquilamente, imperturbável, ao que lhe perguntam sobre as mulheres da sua vida. Apetece perder a cabeça, ninguém perde - muito menos ele. Não é assim em "A Vida E Tudo O Mais", o seu último filme, onde interpreta David Dobel, um guerreiro feroz (que é como quem diz, um violento reaccionário). Sim, é mais um filme de e com Woody Allen, mas ele já não ocupa o centro. Melhor dizendo: Woody está por todo o lado, porque "A Vida E Tudo O Mais" é Allen em piloto automático, Allen a refazer o mesmo.

É inevitável lembrarmo-nos de "Manhattan" (1979), que já era o filme, por assim dizer, com que o realizador cego (Allen, claro) do anterior "Hollywood Ending" tentava o seu "comeback". É inevitável porque o par de "A Vida E Tudo O Mais", Jerry e Amanda, descreve o mesmo percurso de Woody Allen e Diane Keaton, porque o realizador volta a filmar em "scope", porque, enfim, este é também um filme sobre Nova Iorque, uma nova elegia - mas, agora, a cores. É como se nada tivesse mudado com o 11 de Setembro, a cidade surge de forma luminosa e acolhedora.

Allen garante que Nova Iorque continua a mesma: "Se fosse a Nova Iorque hoje e tivesse estado lá há cinco anos, e se eu lhe trocasse os dias, sem lhe dizer em que ano estava, não saberia ver a diferença. Não há qualquer diferença perceptível. Claro que, se algo acontece, como um apagão, pensa-se logo em terrorismo. De resto, se for ao teatro não tem que passar por um detector de metal ou dar impressões digitais, se for a um jogo de baseball, há 80 ou 90 mil pessoas no estádio dos Yankees..."

Bastaria lembrar a Woody o que afirmou, em 1986, à revista "GQ", para apontar-lhe as contradições do seu discurso. Dizia ele, então, a propósito das romarias de turistas que enchem o bar do Hotel Carlyle para o ver tocar clarinete: "Estou constantemente a encontrar europeus cuja única percepção de Nova Iorque vem de filmes como 'Manhattan' e 'Annie Hall'. Diria que 75 por cento das pessoas que vêm ver-me tocar são europeus que foram aliciados pelas imagens da cidade nesses filmes. Se é isso que estão à espera de encontrar, suponho que fiquem desapontados." Ou seja, a Nova Iorque dos seus filmes sempre foi imaginária - e talvez Allen continue a filmá-la assim porque é a sua forma de responder ao 11 de Setembro.

as idades de Woody.

Foi também em "Manhattan", perdoem a insistência, que Woody começou a confrontar-se com a idade. O seu "middle aged" Ike Isaacs envolvia-se com uma rapariga muito mais nova (Mariel Hemingway) que, na verdade, como notou o crítico Peter Conrad, não era mais do que a remota lembrança da sua própria juventude. É assim em "A Vida E Tudo O Mais", onde o velho Woody é uma figura tutelar a olhar para a sua versão rejuvenescida em Jason Biggs. Como o próprio realizador reconhece, o papel de Jerry Falk seria "mais natural" para ele. Jerry é um escritor de comédia em busca de reconhecimento (onde é que já vimos isto?), apaixonado pela namorada (Christina Ricci) que parece estar constantemente a escapar-lhe (onde é que já vimos isto?), debitando dúvidas existenciais nas visitas ao psicanalista (pois, onde é que já...?).

"Eu era assim quando era jovem", diz Woody. "Não tão exagerado: era mais funcional do que ele. Não estava assim tão completamente perdido, tão embrulhado nas relações erradas; era produtivo, estava a trabalhar em programas de televisão e a escrever."

No filme, Dobel é o mentor de Jerry, capaz de aconselhá-lo sobre tudo, intimidade incluída. Que é o velho Woody a aconselhar o jovem Woody. É apenas coincidência que Dobel soe como "double", duplo? "Não foi intencional. Mas isso é toda a base da psicanálise: que as coisas saem sem darmos por elas..."

Tem-se a sensação de ver o realizador a passar o testemunho a um elenco mais jovem. "Do ponto de vista da realização, ficaria bastante feliz em não entrar em nenhum dos meus filmes. Quando era jovem, correspondia a todos os papéis que estava a escrever. Agora que estou mais velho, não sou tão adequado. Poder oferecer isto a outros actores e actrizes é um prazer", explica.

Mas é difícil perceber quem é que se está a apropriar do quê. É que, frequentemente, os actores principais dos seus filmes, como Kenneth Branagh em "Celebridades", tendem a emular a própria presença de Woody-actor, os seus maneirismos. "Certo, mas o Jason [Biggs] não. Consigo ver isso no Kenneth, mas o Jason... se vir 'American Pie', ele é exactamente o mesmo. Nunca tinha ouvido falar do Jason. Disseram-me: 'Tens que ver este rapaz, é mesmo o que andas à procura." Mostraram-me uma cassete de vídeo, vi um minuto de 'American Pie', em que ele estava a andar na rua com uma rapariga, a falar com ela, e disse: 'Têm razão...'"

Só viu um minuto?

"Sim. Não vi 'American Pie' porque acho que muito provavelmente é um filme bastante idiota. O segundo, dizem-me, ainda é pior. Mas o Jason pareceu-me excelente quando o vi. Nunca tive que lhe dar direcções, ele é um doce de rapaz, um bom miúdo..." E, no filme, um Woody mais novo... "Eu não era um actor como Jason, limitava-me a interpretar a mim próprio. Mas o Jason pode representar. E só tem 25 anos: quando for mais velho, pode realmente fazer coisas, papéis diferentes. Eu era mais específico: pequeno, com óculos... O Jason pode ser um 'leading man' num variado número de filmes. Algo que eu não podia fazer quando era novo. Era muito bom a fazer de mim, mas a partir daí..." O novo Adam Sandler (para lembrar um recente caso de redenção, via Paul Thomas Anderson)? É quase seguro que vamos olhar Biggs de maneira diferente depois de "A Vida E Tudo O Mais".

Também Christina Ricci, como Allen admite, pertence a uma linhagem de personagens femininas neuróticas da sua filmografia - "Diane Keaton era uma delas, a Diane Wiest, Judy Davis..." "Quando comecei, não conseguia escrever papéis para mulheres. Mas depois iniciei a minha relação com a Diane Keaton, vivíamos juntos e achei-a tão interessante, que comecei a ver o mundo através dela. Escrevi vários bons papéis femininos ao longo dos anos. As actrizes que entravam nos meus filmes tinham bons papéss, ganhavam Óscares. E os homens eram... enfim, sabem, eram patetas. As mulheres é que eram interessantes." Woody diz que "estava ansioso" por trabalhar com a actriz. "Quando me perguntavam 'com quem queres trabalhar? Marlon Brando...?', eu dizia sempre: "Não, não há ninguém com quem queira muito trabalhar porque escrevo a história e os papéis com alguém em mente e é essa pessoa que eu quero'. Mas gostaria de poder pensar nalguma coisa para a Christina Ricci, tinha-la visto nuns quantos filmes e achei-a tão interessante... Foi um grande prazer para mim trabalhar com ela."

o humor é acidente.

"A Vida E Tudo O Mais" é o filme mais cómico de Allen dos últimos tempos. Há nele uma vitalidade que estava ausente da crise de meia-idade de "Hollywood Ending", com Woody a capitalizar o seu novo "character", paranóico, agressivo, acossado, capitalizando piadas sobre o Holocausto. E antes de dizerem que só um judeu se atreveria... "Não vejo como é que se pode relacionar o humor com uma questão étnica. Sentido de humor é um dom que alguém tem por puro acidente, tal como algumas pessoas podem desenhar e outras terão ouvido para a música. Grandes comediantes, como Buster Keaton ou W. C. Fields, não eram judeus. É um acidente genético, de certa forma."

O velho Dobel vive algo fora da realidade, é um imparável furioso, insistindo em comprar uma arma e preparar um "kit" de sobrevivência para o passivo Jerry porque o mundo é um lugar perigoso. Em Veneza, Allen dirá que Dobel é um produto da paranóia de medo e tensão que o mundo vive nos últimos tempos. Mas o realizador não está interessado em política - "como cidadão, sim" -, como parece estar interessado em pouco mais do que o seu mundo, que é de onde vêm os seus filmes. Alguma vez se irrita, como Dobel?. "Com a minha torradeira... ", ri-se. "Quando estou sozinho com um qualquer objecto inanimado, como uma torradeira ou um copo misturador, posso ficar bastante irritado e frustrado. Mas em geral, sou muito pacífico, sou radicalmente contra as armas, sou a favor de um controlo a 100 por cento das armas no meu país." A sequência de perguntas é aleatória: Acha que nos seus concertos as pessoas vão ver o músico ou o realizador? "Preferia ter um talento musical do que qualquer outro. É melhor ter um talento não-cerebral. Um talento cerebral exige muito trabalho e energia."

Diz que "nos filmes que agora são feitos nos Estados Unidos, as piadas são más" - talvez seja por isso que continua a fazer filmes, para contrariar a tendência. Ainda assim... "Os meus filmes são sempre um desapontamento para mim. Sempre, sem falha. Porque são tão idealizados quando os estamos a fazer... Quando estou em casa, a escrever, estou a pensar: 'Meu Deus, isto vai ser tão fantástico! O Jason vai entrar, a Christina e eu vamos lá estar, vou mover a câmara em redor...' A concepção é tão grandiosa e, quando se começa a fazer o filme, não funciona assim: esta piada já não tem tanta piada, aquele plano não foi tão bom, e é mais difícil do que eu pensava conseguir aquilo, e isto tem que ser cortado e aquilo é demasiado lento... Quando finalmente vejo o filme, está tão longe do que eu pretendia... Agora, essa distância pode ter vários graus: alguns são 75 por cento do que eu queria, outros 25 por cento. Fico sempre a pensar: 'Se ao menos vocês pudessem ver o filme que eu queria fazer...' Nunca consegui realizar isso. Estive perto com 'Maridos e Mulheres' e 'A Rosa Púrpura do Cairo'. Esses dois filmes ficaram muito próximos do que eu queria realmente fazer."

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