Trabalho Espiritual

Assim de repente, com um título destes, pode parecer uma "sequela", um aproveitamento da fórmula de "Mãe e Filho". Nada de mais errado, são dois filmes diferentes. Fazem, isso sim, parte de uma trilogia que Sokurov, depois de abordar o amor de mãe e o amor de pai, conta encerrar com o amor fraternal: "Dois Irmãos e uma Irmã", assim se chama o último tomo previsto.

Estranhíssimo filme, este "Pai e Filho". E não estamos a usar o "estranhíssimo" por oposição aos filmes dos outros realizadores, mas por relação com a própria obra de Sokurov. "Pai e Filho" é uma coisa tão "off" que damos por nós a pensar que perante um tal filme todos os critérios de apreciação se tornam irrelevantes, e que a própria apreciação (o "gostar" ou "não gostar") é infinitamente menos importante do que o facto de se ter passado pelo filme, de se ter sido exposto a ele.

Dizer isto serve, é verdade, como justificação mínima para a perplexidade que o filme provoca, mas também é uma maneira de "entrar" no esquema mental de Sokurov, e naquela que é a sua concepção de cinema. Sokurov é personagem complexa, quase autista (a maneira como impõe o seu olhar ao mundo em vez de o submeter a ele é uma dos aspectos mais evidentes da sua obra, e "Pai e Filho", até pelo uso da paisagem reconhecível de Lisboa, que aqui "passa" por uma cidade russa, é disso um exemplo desconcertante), dono de um pensamento e de um discurso que às vezes provocam desconforto: se impõe o seu mundo ao mundo é porque, de modo expresso, não é capaz de ver no mundo real e contemporâneo ("y compris" a arte e o cinema) outra coisa para além de podridão e corrupção, mental e material.

Não é preciso, no entanto, partilhar essa visão apocalíptica das coisas para se ser tocado pelo cinema de Sokurov, nem mesmo quando ele interpela o espectador como fazendo parte integrante dessa paisagem devastada. Mas também é por isso que, sendo um esteta em estado puro, Sokurov é tudo menos um "esteticista" - para ele, a estética só faz sentido quando possuída por virtudes "teleológicas", quando é um recurso posto ao serviço da "elevação" do homem e da sociedade. No seu "website" oficial (é verdade, tem um), há um aviso: o cinema de Sokurov não é para quem vai à procura de "entertainment" mas de "trabalho espiritual". Faz sorrir, não pela recusa do "entertainment" (conceito demasiado "gratuito" para Sokurov) mas pela expressão usada: "trabalho espiritual". Que é como quem diz, que o que ele faz, o que ele persegue, não são bem filmes nem bem cinema, mas qualquer coisa outra que meramente usa os filmes e o cinema.

Dizer tudo isto é menos fugir ao essencial (ou seja, falar de "Pai e Filho") do que defender que há aqui qualquer coisa de profundamente específico que pede uma reacção específica. Como outros filmes de Sokurov, "Pai e Filho" é uma pequena totalidade completamente estanque, incomparável com qualquer outra coisa que esteja em cartaz, e que sobretudo pede outra coisa para além do imediatismo de um juízo, seja ele positivo ou negativo, ou branco ou preto.

Experimente-se, arrisque-se. Experimente-se e arrisque-se a estranheza dos planos iniciais, quando o pai e o filho, de corpos deformados pela objectiva, mais parecem dois amantes - mais tarde percebemos que é como se Sokurov filmasse um parto e um homem desse outro à luz. Agarre-se, se for preciso, esse "tema": a história de um pai e de um filho que tudo une (a recordação da mulher/mãe morta, entre outras coisas) e que vivem um "amor idealizado que não existe na realidade" (Sokurov dixit) mas que são dois, têm cada um uma vida, e há forçosamente um momento de separação - o "velho" dá lugar ao "novo", a "casa" deixa de existir, um é lançado ao mundo e outro é relançado.

Pense-se, se se quiser, que também pode haver aqui um discurso sobre a Rússia, sobre a "nova" e a "velha" Rússia, com a fusão de tempos e de épocas, e as alusões ao exército. E sobretudo, admirem-se as fulgurâncias de "Pai e Filho": o sonho, com o filho regressado ao "décor" de "Mãe e Filho"; a conversa entre o rapaz e a namorada, por entre olhares trocados através da vidraça, e a sua rima no final, quando a namorada já o trocou por outro e fala com ele duma varanda; os planos de uma Lisboa que não chega a ser transfigurada mas para a qual Sokurov inventa uma luz nova. Experimente-se, porque nada disto tem minimamente a ver com seja o que for que ande por aí nas salas.

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