"Italiano para Principiantes"

No dia 13 de Março de 1995, em Copenhaga, um grupo de cineastas dinamarqueses reuniu-se para proclamar um "voto de castidade". Nessa segunda-feira que se pretendia mítica, foram estabelecidas duas mãos cheias de regras sagradas, quais Dez Mandamentos, que deveriam passar a nortear o trabalho futuro dos "jovens turcos" nórdicos. O objectivo deste sonho de revolução (afinal, a Primavera estava aí a bater à porta...) era simples: rejeitar todo e qualquer artifício cinematográfico - daí as imposições, entre outras, da câmara à mão, dos cenários e luzes naturais ou do som directo -, em nome da "honestidade" e "pureza" de um "cinema-verdade".

Os primeiros frutos deste sismo fílmico, baptizado de Dogma 95, surgiram três anos depois: os seminais "A Festa" e "Os Idiotas", dos "pais" Thomas Vinterberg e Lars von Trier, foram apresentados no Festival de Cannes e o abalo fez-se sentir de imediato. Não era para menos, perante um "novo" cinema, feito de desespero e angústia, com tanto de provocador como de castigador (não parecia haver lugar para compaixão, apenas punição), sem recusar (antes pelo contrário, procurando mesmo) os efeitos-choque. Aliás, já dizia o Manifesto que os pruridos estéticos e de bom gosto seriam lançados janela fora, na procura da tão fugidia "verdade". Uma espécie de "Santo Graal", portanto, associação nada descabida, em função do forte moralismo religioso subjacente a todo o projecto: os "pecados" de "ostentação" e "vaidade" de um "cinema artificial" dariam lugar a uma "virtude" regeneradora.

O problema é que de boas intenções está o Inferno cheio, e o início fulgurante, com dois objectos de uma vitalidade radical, não teve a melhor sequência: a repetição incessante das mesmas características, formais e temáticas - não só em objectos da "casa", como "O Rei Está Vivo", de Kristian Levring, mas também numa série de exemplos (o francês "Lovers", de Jean-Marc Barr, vem mesmo a calhar) que se foram espalhando um pouco por todo o lado, no seguimento da exportação do movimento -, fez nascer o cansaço. Estagnação, não era o que se pretendia evitar?

Moral da história: os filmes Dogma começaram a suscitar a mesma reacção - enfado - que o tipo de cinema contra o qual (supostamente) se rebelavam. Tornou-se assim evidente o que se podia intuir desde o primeiro momento: a manutenção, sem mais, da mesma fórmula só podia levar à passagem do prazo de validade e à inevitável extinção.

Desejo de mudança

Daí a importância de "Italiano para Principiantes" (2000), de Lone Scherfig. O nome soa a algo de diferente em relação aos dos outros embaixadores "dogmáticos" referidos (se calhar até não, mas vamos imaginar que sim...)? É porque o filme foi o primeiro (mas não o último) no cânone do Dogma 95 a ser realizado por uma mulher. Se as duas coisas estão relacionadas não se poderá saber com certeza, mas o facto é que é com "Italiano para Principiantes" que pela primeira vez se materializa com clareza um desejo de mudança (que "Mifune", de Søren Kragh-Jacobsen, já deixara antever), de ruptura com o passado do movimento, em direcção a novos caminhos.

E à primeira vista, até nem parece. Estão lá todas as marcas associadas ao Dogma (apesar de na cena final a música irromper, "heresia" proibida pela cartilha) e o próprio processo "pré-filme" não se desviou dos modelos padrão, com Scherfig a escrever o argumento com base na improvisação com os actores (por sinal, todos admiráveis). E, de facto, foi principalmente pelas vantagens de um método de produção menos pesado que a realizadora chegou ao Dogma, depois de duas longas-metragens - "The Birthday Party" (1990) e "On Our Town" (1998) - e de várias séries de TV.

É preciso, então, vasculhar mais fundo do que a superfície para encontrar os sinais de diferença. Talvez experimentando um resumo da história, que gira à volta de um grupo de figuras infelizes que, para afastar a solidão, se reúne num curso (pouco frequentado, como convém, para facilitar a intimidade) de italiano, numa pequena cidade perto de Copenhaga. Quem são? Há Andreas, um padre viúvo que chega para substituir o pároco local, suspenso; Jorgen Mortensen, recepcionista de hotel impotente; a trapalhona Olympia, que trabalha numa padaria e vive sob o jugo de um pai execrável; Karen, cabeleireira, também ela a braços com um progenitor que a domina - a mãe, em estado avançado de alcoolismo; Havflinn, adepto fanático da Juventus e gerente de um restaurante no estádio de futebol, às voltas com o dilema de aparar ou não o cabelo; e a colega deste, Giuliana, uma italiana desbocada.

Há algo de caloroso no reino da DinamarcaAngústias, neuroses, disfunções sexuais e perturbação familiar: tudo isto transita de "dogmas" passados, mas a novidade é que aqui vem embrulhado num tom ligeiro de comédia romântica agridoce, nos antípodas do negrume anterior. Ou seja, ao longo dos vários encontros e desencontros dos protagonistas, nunca por um momento se duvida do desenlace - feliz, pois claro, numa Veneza idílica onde as paixões em banho-maria explodem finalmente -, até porque mesmo a morte potencia a felicidade e a união: depois dos funerais dos pais, Olympia e Karen libertam-se das amarras que as prendiam e descobrem ser irmãs.

Por isso mesmo, o olhar de Scherfig não é de cinismo ou frieza, antes empático e caloroso (o próprio estilo documental potencia essa vontade de estar ao lado das personagens), num filme - ou "documentário dos sentimentos", nas palavras da realizadora - de uma simplicidade e delicadeza desarmantes. "Italiano para Principiantes" (além dos inúmeros prémios internacionais, destaque para o Golfinho de Ouro no Festróia) trouxe hipóteses de vida nova para o movimento tarde demais (o Dogma morreu logo a seguir, pois os revolucionários de ontem já não parecem ter hoje vontade de querer mudar o mundo)? Pouco importa: pelo menos, Scherfig mostrou-nos que o sol também pode brilhar na Dinamarca...

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