América, esconde os teus filhos

... E antes de "Ken Park" - e antes de "Elephant", de Gus Van Sant -, houve "Bully". É o penúltimo filme de Larry Clark, anterior a "Ken Park", mas que, por contingências da distribuição portuguesa, só agora nos chega - parece legítimo admitir que "Bully" é, hoje, um objecto de menor risco do que à data de realização, em 2001, por uma curiosa lógica de inversão: porque filmes como "Ken Park" e, sobretudo, "Elephant" prepararam o caminho (quando, na verdade, "Bully" é o precursor). Este: a radiografia da adolescência como estado de todos os riscos e novo epicentro de violência e terror (como, até então, as minorias étnicas).

É certo que bastaria "Kids" (1995) - e, porventura, bastaria o seu trabalho como fotógrafo, nos anos 70 e 80, gerando álbuns como "Tulsa" ou "Teenage Lust" que se tornaram "reference books" para gente como Gus Van Sant - para que Larry Clark fosse figura imprescindível na definição da juventude perdida (e perdedora) dos nossos dias; mas, mesmo sendo filmes bastante próximos (a começar por aquilo que é mais visível e reprovado no cinema de Clark, a explicitação sexual dos seus adolescentes, o vazio de inocência, a sua movimentação numa "danger zone" de drogas e ociosidade), "Bully" faz das suas figuras adolescentes assassinos em plena ressaca pós-Columbine e pré-"Elephant". Ainda por cima (mesmo não sendo tão abstracto como o último filme de Van Sant), sem procurar grandes motivações ou explicações. Cúmulo dos cúmulos, os seus "teenagers" matam porque sim, que é como quem diz, porque não?

kids a matarem kids. "Bully" é baseado num caso verídico que esteve na origem de um "true crime novel" de Jim Schutze: o assassínio, em 1993, de um adolescente por outros seis dos quais apenas um conhecia a vítima - e era o seu melhor amigo. A "verve" sensacionalista do livro-investigação de Schutze foi suficiente para atrair o interesse dos estúdios que, depois do massacre de Columbine, se retiraram do projecto, naturalmente porque era "sobre 'kids' a matarem 'kids'". "Bully" pôde avançar graças a financiamento francês e, conta Clark, quando enviou o filme à Motion Picture Association of America, para ser classificado para exibição, este "watchdog" mandou ao realizador um recado: "América, esconde as tuas crianças". Que é como o inclassificável pode gerar o medo. E que é como a proximidade de Clark com os seus adolescentes continua a ser objecto de perturbação, fundamentando tanto a acusação de "dirty Larry", o pornógrafo, como a defesa de "Larry the kid", o que está com os seus jovens.

No caso de "Bully", o realizador até teve oportunidade de invocar a caução de história real, ou seja, se está no filme é porque aconteceu. Para o golpe de autenticidade (que é sempre algo que enforma o olhar do cineasta: um actor de "Kids" contou como, anos depois, ainda "sofria" as consequências do filme ter sido julgado um documentário por alguns espectadores), preservou os nomes verdadeiros dos envolvidos. Eles são Bobby Kent e Marty Puccio - e Lisa, e Ali, e Heather, etc. - e são filmados no mesmo espaço onde se deram os acontecimentos, que por acaso se chama Hollywood, que por acaso não é a Hollywood que estão a pensar mas uns subúrbios do sul da Florida.

Bobby (Nick Stahl, actor de "In the Bedroom") e Marty (Brad Renfro) são amigos desde pequenos, trabalham juntos como "sandwich boys", saem juntos, são, enfim, o par de "Bully", o que sobressai do domínio de um sobre o outro (como um casal violento) e se vai adensando na tensão sexual implícita. Como na tradição do "noir", é a aparição de um terceiro elemento, Lisa (Rachel Miner), que vai precipitar a fatalidade: quando ela se torna namorada de Marty, Bobby intensifica a sua brutalidade sobre Marty (e sobre aqueles que os rodeiam), que é a sua forma de lidar com a impossibilidade de uma relação amorosa entre os dois. E porque Marty é de uma passividade imponente, acabará por ser Lisa a dar forma a uma ideia, letal: porque não matar Bobby, o rufia, o "bully" do título? E já que se falou de "noir": a ideia rapidamente adquire proporções de demência em Lisa, projectando a cegueira de uma "femme fatale" (a Barbara Stanwyck de "Pagos a Dobrar", por exemplo) e instigando os outros a executar o plano.

Mas "kids will be kids", e os de "Bully" compõem o retrato de grupo "in extremis" de uma juventude sem reparo, sem rumo nem vontade, leviana e irresponsável, cujos actos serão, até ao fim, alheios a qualquer noção de realidade - como em "Kids", sim, mas aí já havia Chloe Sevigny consciente da sua tragédia (e da dos outros), num périplo desesperado por Nova Iorque.

"Bully" não é um filme de tese mas um filme sintomático de uma sociedade à deriva. Jogos de vídeo, clips de Eminem são aflorados sem que se deduza serem as causas de violência (a dada altura, todos os pretextos servem para matar Bobby, mesmo a sua forma de conduzir).

É por aqui que se começa a perceber a intensidade de "Bully": pela forma como Clark filma do lado dos "kids" - os "travellings" correspondem ao ponto de vista de quem está em trânsito, num carro, recorrente nos videoclips de hip-hop que integram a dieta de imagens da geração MTV, tal como "Elephant" adoptava a perspectiva dos vídeojogos -, sem deixar de manifestar a sua posição crítica, implacável mesmo, sobre eles. É um dado inédito, que permite admitir "Bully" como um filme de transição entre "Kids" e "Ken Park", entre a total ausência dos pais e a sua integração quase utópica, ao mesmo nível dos filhos. Já não vale atirar as culpas todas para cima dos pais que, mesmo ausentes, começam a ter uma maior presença em "Bully". Não por acaso, o próprio Larry Clark interpreta um deles, em breve "cameo". Não por acaso, Clark é um dos "pais" que, na sequência final, estão presentes no tribunal onde os "kids" são condenados, olhando-os atónitos, com horror, como se não reconhecessem os filhos.

Alguém disse que "Kids" e "Bully" partilhavam a mesma obsessão: mostrar a "teenagers" frívolos a sua inconsciência. Em ambos, é o instinto predador que domina as relações, em ambos se assiste a uma contaminação, à circularidade de um mal (a sida no primeiro, o assassínio no segundo). A diferença é que, em "Bully", os "kids" rejeitam visceralmente a constatação do "no future", da sua perda.

Por isso, toda a juventude será castigada, por isso, Clark já não é meramente um observador quase antropológico. É, também, um moralista (mas não moralizador), que apenas parece aderir à inconsciência dos seus adolescentes (roçando a paródia, com a personagem de Michael Pitt) para que a gravidade que se abate sobre eles, no final, seja ainda mais demolidora - e cujo efeito é "fatalizá-los" como acontece num jogo de vídeo referido, ou seja, empurrá-los para um estado de regressão infantil. É por isso que o olhar do cineasta nunca foi tão cru, é por isso que "Bully" é um filme terrível. "São todos como pessoas reais, são como nós". Foi a resposta de Larry Clark quando lhe perguntaram porque é que as suas personagens são tão "unsympathetic".

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