A comédia da infelicidade

De repente, em pezinhos de lã (as campanhas de marketing massivas costumam ficar reservadas para outro tipo de produtos), chega aquela que é já uma das boas surpresas do ano. E "A Estranha Vida de Igby", primeira obra de Burr Steers, é mesmo um daqueles objectos que, pela sua "peculiaridade" (não é todos os dias que um filme começa com dois filhos a estrangular, de forma cómica e até à morte, a mãe...), parece estar destinado ao culto. Algo que, aliás, a recepção crítica nos EUA deixa antever, tal a divisão radical de opiniões, entre adoração e repúdio.

No centro de mais este exemplo da vitalidade recente - pense-se em "Rodger Dodger" ou "É Agora ou Nunca" - do dito "cinema independente americano" está Igby (notável Kieran Culkin, irmão de Macaulay; depois deste filme, deixará de ser visto apenas como uma das crianças que partilhou a cama de Michael Jackson...), um adolescente de 17 anos, cínico e misantropo. Expulso de várias escolas privadas, põe-se em fuga para Nova Iorque, à procura de um significado para a sua existência e de romper com uma família abastada mas disfuncional: a mãe (Susan Sarandon) é uma megera cruel e egocêntrica, viciada em comprimidos; o pai (Bill Pullman) está há anos a vegetar num hospital psiquiátrico, após um esgotamento nervoso; e o irmão mais velho (Ryan Phillippe), Republicano e estudante de Economia ("Neofascismo", segundo Igby), é um pedante insensível.

Desde logo, ressalte-se o óbvio: a desorientação e a raiva do jovem anti-herói perante a "hipocrisia" e a "falsidade" do mundo adulto são mais do que reminiscentes do Holden Caulfield de "Catcher in the Rye" (e, depois de "É Agora ou Nunca", não deixa de ser curioso que, num pequeno espaço de tempo, apareçam dois filmes sobre os quais paira a sombra da obra de J.D. Salinger), a quem Igby se assemelha, numa versão para o séc. XXI. Mas não vale a pena empolar essas proximidades, até porque o próprio Steers, se nunca escamoteou a influência de Salinger, também não se coibiu de convocar a memória de Hal Ashby ("Harold e Maude" deve ter sido decisivo para cultivar o gosto pelo humor mórbido), referência à qual podíamos acrescentar outras, mais actuais: "Ghost World" ou "Os Tenenbaums" ("...Igby" fica aquém do filme de Wes Anderson, mas não deixa de ser tentador ver em Steers mais um potencial "wonderkid").

Serve isto para dizer apenas que não é só de "teen angst" que se fala aqui. O filme de Steers (pormenores biográficos interessantes: participou como actor em "Cães Danados" e "Pulp Fiction" e os seus tios são Gore Vidal e Jackie Kennedy) vai além da recuperação do tema das dores de crescimento: é tão ou mais importante o olhar, ao mesmo tempo cáustico e caloroso, que lança sobre a intelectualidade e a boémia nova-iorquinas, através de uma colecção de personagens que, à falta de melhor forma de passar o tempo, se queixam incessantemente dos seus "problemas".

É com elas que Igby se cruza, ao longo de uma série de episódios (não há propriamente uma "narrativa"), dolorosos e divertidos, que vão ilustrando as suas aventuras enquanto deambula pela cidade, num tom rugoso que se adequa à turbulência do retrato de uma existência à deriva. E são também estas figuras "offbeat" o trunfo de um filme, acima de tudo, admiravelmente bem escrito. Ainda para mais quando surgem defendidas por um formidável grupo de actores. Jeff Goldblum, Claire Danes, Amanda Peet ou Jared Harris comprovam que este é um daqueles casos em que as estrelas sacrificam ordenados chorudos perante a sedução do perfume de uma "liberdade" que raramente lhes é permitida. Opção compreensível, tendo em conta a inteligência de um argumento cheio de espirituosidade mordaz (pérolas do género "se o Céu é um lugar tão bom, porque é que ser crucificado é um sacrifício tão grande?"), com diálogos orgulhosamente artificiais: na "vida real" ninguém fala assim, mas a verve que em "...Igby" todos parecem exibir, reagindo com ironia e sarcasmo insuperáveis a tudo o que os rodeia, serve para disfarçar o que é irreprimível (e comovente): a solidão e a infelicidade.

Frágil e delicado, à semelhança das personagens, ao querer ser tanto ao mesmo tempo - comédia negra, sátira social, tragicomédia -, o filme arrisca por vezes a inconsistência (há momentos em que parece comprazer-se em olhar para o umbigo), mas não há como negar (e aplaudir) a coragem das suas ambições. Por isso mesmo, é uma obra que apetece abraçar, enquanto se espera pelo que Steers possa fazer a seguir.

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