Sonhos de Nova Iorque

"Give me your hungry, your tired, your poor, your wretched masses yearning to be free", reza a famosa inscrição da Estátua da Liberdade (há uma canção de Lou Reed que propõe uma versão menos positiva, mas não vem ao caso), num resumo de um dos principais pilares da mitologia americana. A América como país de acolhimento, caldeirão integrador dos desafortunados do mundo inteiro, terra das oportunidades, das quais as menores não serão as que, como a redenção ou a salvação, implicam conotações religiosas.

Não seria difícil defender que, de Griffith a Scorsese, o cinema americano sempre filmou isto, tanto mais que a sua própria história (talvez mais a "clássica" do que a "moderna") faz dele um cinema de acolhimento para desafortunados de todo o mundo (Chaplin, Lang ou Kazan, para ficar com três exemplos não completamente ao acaso). Por questões facilmente explicáveis, foi de cineastas como eles que partiram algumas das mais complexas visões da América, interrogada como mito e como facto, e interrogada no espaço entre uma coisa e outra - não há filme mais simbólico e, num certo sentido, mais importante na fundação de um modelo de relação com essa América entre mito e facto do que "O Imigrante" de Chaplin. O cinema americano, esquece-se muita vez, amadureceu cedo.

Isto a propósito de "Na América", do irlandês Jim Sheridan. Mesmo reconhecendo alguma simpatia pelo projecto - a saga de uma família irlandesa tentando vingar em Nova Iorque enquanto atravessa o processo de luto pela morte de um filho - é difícil fugir à ideia de que se trata, apesar (ou também por causa) do título grandiloquente e programático, da enésima reiteração de uma história mil vezes contada de melhor maneira. O filme tem "capital" autobiográfico, baseando-se nas memórias de Sheridan do tempo em que com a sua família viveu, nos anos 80, em Nova Iorque (e o argumento foi co-escrito com as suas filhas). Mas não ultrapassa, apesar do esforço melodramático, uma ilustração beatífica, dir-se-ia pasmada, da América já não como "mito" ou como "facto", mas como "cliché". Faz sentido dizer que não é um filme americano, muito menos o filme de alguém que, não sendo americano, esteja realmente "in america": não é da América que o filme fala, mas de uma imagem ou de um sonho cuja existência real o filme é sempre incapaz de confirmar, prisioneiro da sua lógica de lugares-comuns.

Nem se pode dizer que Nova Iorque tenha uma real existência dentro do filme: supõe-se que a acção se passe num quarteirão pobre mas o retrato é higienizado; Sheridan rodou as cenas de interiores em estúdio na Irlanda mas, bom, ainda assim é difícil acreditar nesta Nova Iorque (ter visto o "Bad Lieutenan" de Ferrara recentemente ajuda a não acreditar). É claro que o olhar de Sheridan tende para uma estrutura de fábula, onde não por acaso o "ET" de Spielberg é uma referência central, mas aí nota-se melhor que lhe falta talento para ser capaz de a levar às últimas consequências, e assumir tanto a irrealidade como o "tearjerk". Depois, há sequências de montagem paralela bastante difíceis de engolir, minadas por um simbolismo simplista - em especial, toda a relação com o artista negro e moribundo que vive no mesmo prédio.

Sobra o quê, apesar de tantos contras? O tema do luto, tratado com uma sensibilidade ("in américa" ou "in ireland", tanto faz) que garante os melhores momentos do filme, sempre que Sheridan envereda por um registo mais discreto e emocionalmente intimista. Os actores (Paddy Considine e Samantha Morton) são bons, as duas miúdas foram um bom "casting", e Sheridan, no fundo, o que faz melhor é dirigir actores.

Sugerir correcção
Comentar