o Fascínio e o Estado das Coisas

Quando estreia mais um filme português, fundamental se torna lembrar que o cinema nacional continua a lutar contra os preconceitos de um público, condicionado, diga-se em abono da verdade, por anos de uma campanha surda, insistindo em estereótipos descabidos: o cinema português é chato; tudo passa por planos fixos intermináveis; os actores portugueses não são "naturais" (o que quer que seja que tal signifique) e outros disparates instituicionalizados.

E assim se deixou cair, no ano que está a findar, o extraordinário "canto do cisne" de João César Monteiro, "Vai e Vem", o belíssimo "Quaresma", de José Álvaro de Morais, ou o rigoroso "Xavier", de Manuel Mozos, olhar profundo sobre a década anterior, resgatado à sua incompletude.

No entanto, este desprezo por nós não se restringe ao chamado "cinema de autor". Os últimos filmes de Joaquim Leitão, outrora triunfador na bilheteira, de Luís Filipe Rocha ou de José Carlos de Oliveira falharam no contacto com o público, levantando uma questão pertinente: valerá a pena "cedências" perante o "gosto do público", quando este "boicota" praticamente tudo o que se produz no "jardim à beira mar plantado". Mesmo o relativo sucesso de "A Selva" fica longe de compensar o gigantesco investimento financeiro.

Tudo isto surge a propósito de "O Fascínio", longa-metragem de José Fonseca e Costa, um dos nomes de referência da segunda fase do cinema novo (com "O Recado", 1972) e autor de um dos mais interessantes filmes "comerciais" do cinema nacional, "Sem Sombra de Pecado" (1983), para além de um grande êxito de bilheteira, "Kilas, o Mau da Fita" (1981).

Tendo por base um texto do brasileiro Tabajara Ruas, co-argumentista de "Kilas", este "O Fascínio" - que agora estreia sabe-se lá para que destino - constitui curiosa tentativa de embarcar num cinema popular, de narrativa fluente e com razoáveis valores de produção: um notável trabalho fotográfico (por vezes "bonitinho" demais) de Acácio de Almeida, uma eficaz banda-sonora de Pinho Vargas, uma poderosa direcção de actores com Vítor Norte numa boa composição e, sobretudo, com a revelação do prometedor José Fidalgo, seguro e sóbrio, um actor de cinema com futuro.

O filme arranca, aliás, muito bem com a excelente criação de uma atmosfera fantástica, rara no nosso cinema: os sonhos do protagonista (Vítor Norte) com um passado que desconhece, dando vida às fotos que encontra na quinta, têm uma força estranha e dão conta de um imaginário político bem estruturado. As figuras misteriosas do caseiro (José Pinto) e da neta (Ana Moreira), bem como a perturbante personagem de Medina (excelente José Eduardo), inscrevem-se neste mundo secreto de sombras e de homens armados, que aparecem e desaparecem, vindos não se sabe muito bem de onde.

Até aqui, tudo bem. Contudo, a narrativa desequilibra-se, quando não se resiste a explicar e, de certo modo, a banalizar, com a história da prostituta degolada, o enredo dos tráficos (demasiado óbvio) e com um final previsível e precipitado: a personagem de Paulo Pires não passa da rábula; desperdiça-se o talento provado de Custódia Gallegos, presa a uma figura sem profundidade; encaixa-se a martelo um "travesti", aliás muito bem esboçado por Albano Jerónimo; não se vislumbra a função do episódio da vidente, com Cucha Carvalheiro, quase a citar a Marlene de "A Sede do Mal", de Welles.

No cômputo geral, um filme profissional, bastante bem contado, com ideias de cinema, mas que fica aquém das promessas iniciais. E, no entanto, não fica atrás de muita da produção que nos chega de fora, com mais meios e mais pretensões. E o público, como reagirá a esta história de vinganças e ambições na fronteira alentejana e do passado-presente salarazista do nosso descontentamento?

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