Brincamos ou quê?

Takeshi Kitano desconcerta-nos. Depois de ter instituído um poderoso universo cinematográfico com os seus filmes de "yakuzas", o cineasta japonês tem, deliberadamente, ensaiado incursões em territórios que lhe parecem estranhos: filmando na América, em "Brother" (2000), prosseguindo por uma digressão sentimental fortemente enraizada na tradição estética japonesa em "Dolls" (2002) e, agora, convocando um género codificado, o filme de samurais, para o sabotar com "gags" e um... sapateado.

É "Zatoichi", que parece denunciar uma vontade de não se levar muito a sério - e uma reacção quanto à matriz original do seu cinema. É por aqui que começa a conversa num encontro com jornalistas em Paris, no Hotel Bristol, em Outubro: Kitano terá chegado a uma espécie de recessão da sua imagem de autor de filmes de "yakuzas"? "Sim, talvez tivesse vontade de fazer outra coisa. É um pouco como a cozinha: não se pode comer todo o tempo comida japonesa, é preciso variar", responde um proverbial e esquivo Kitano. No "ping pong" das perguntas em francês traduzidas para japonês e das respostas em japonês reconvertidas em francês, a dificultar a réplica, há-de ser sempre assim ou, pelo menos, sempre que o realizador pressentir que do outro lado as intenções não são inocentes.

Em Setembro, "Zatoichi" foi recebido em delírio num Festival de Veneza a meio-gás. Veneza tornou-se, de certo modo, um lugar sintomático da recepção da obra de Kitano: em 1997, quando o Leão de Ouro é atribuído a "Hana-Bi/ Fogo-de-Artifício", abrindo caminho à consagração do japonês no Ocidente, os seus seguidores de primeira hora, os de "Boiling Point" e "Sonatine", vêem nele os sinais de um Kitano já em piloto automático. O "atípico" "Dolls" contribui para abalar o panteão íntimo - ainda hoje lhe pedem contas, ele responde: "quem é capaz de fazer filmes violentos é tanto mais capaz de fazer um filme sobre o amor" - e "Zatoichi" (Leão de Prata para melhor realizador) vem, definitivamente, tirar o tapete. Os preconceitos, já se vê, estão todos do lado de quem vê os filmes. "Um 'entertainer' deve ser capaz de fazer todo o tipo de coisas", Kitano "dixit".

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"Zatoichi", então: interpretada pelo realizador, a personagem titular é um aventureiro nómada, massagista de profissão, jogador por vício. Vemo-lo pela primeira vez sentado à beira de um caminho, o corpo curvado, de olhos fechados, uma figura aparentemente indefesa. Um bando de homens pede a um miúdo que lhe roube a cana, vermelha, sem ele perceber. Tolos insensatos: certamente, nunca ouviram falar de Zatoichi, lendário mestre do sabre. É assim, com jactos de sangue a brotar dos golpes de espada e um rasto de corpos decepados, que Kitano faz o "digest" de uma figura ultra-popular da cultura japonesa e a introduz a gerações inteiras que nunca viram um filme de Zatoichi - no Ocidente e no Japão.

"É uma personagem lendária, um pouco como Zorro ou o Lone Ranger. Hoje, no Japão, toda a gente conhece o seu nome, mas creio que praticamente nenhum dos jovens viu qualquer dos seus filmes. Só agora, que o meu filme acaba de sair no Japão, é que os velhos filmes se encontram facilmente nas lojas de aluguer de vídeo", explica Kitano. Por cá, juramos que também se sentem os efeitos: "Zatoichi contra Yojimbo" não era coisa que se visse, há uns tempos, nos escaparates de DVD.

Zatoichi foi, diz-nos Kitano, praticamente "fabricado por Shintaro Katsu", o actor que interpretou a personagem no cinema e na televisão japonesa, entre 1962 e 1989. À laia de comparação, um artigo na revista "Time" em Setembro propunha um exercício: imaginem Sean Connery a ser substituído se ele tivesse entrado em todos os filmes de James Bond e terão uma ideia do que Kitano enfrenta ao meter-se no lugar de Shintaro Katsu... Mas porque é que o cineasta, que já admitiu nem sequer apreciar por aí além a série Zatoichi ("vi dois episódios, para ficar informado, e fiquei a meio do segundo"), decidiu fazer este filme?

A culpa, fiquem a saber, é de Madame Saito, "uma mulher de armas", segundo Kitano, a quem não se pode dizer não. Saito, ex-dançarina de "striptease" que é hoje detentora de uma série de clubes do género, foi uma protectora de Shintaro Katsu até este morrer, em 1997. Kitano conheceu-a em 1999, quando ela levou as suas "meninas" a um dos "talk shows" de "Beat" Takeshi (é a sua outra faceta , a do comediante mais popular da TV japonesa). Pouco depois, Madame Saito avançou a sua proposta: não estaria interessado em dirigir e protagonizar um novo Zatoichi?

"A condição que impôs foi respeitar as características da personagem - massagista, cego, exímio espadachim - e manter a acção no século XIX. A partir daí, eu seria livre de fazer o que quisesse e, de facto, fiz algo que é muito diferente dos filmes com Katsu".

Para começar: pintou o cabelo de loiro um ano antes da rodagem e mostrou-se assim, nos seus programas de televisão, "para habituar as pessoas à ideia". Fê-lo para se demarcar do actor original, mas também, explica, "porque assim me poderia destacar das outras personagens nas cenas de luta". Nestas, o que domina não é uma coreografia de piruetas - não esperem actores suspensos no ar - mas o corpo-a-corpo onde o vermelho esguicha em tons hiper-realistas, como num desenho animado. Mais: para o curto-circuito que impede "Zatoichi" de ser uma clássica reconstituição de época, é preciso contar com "gags" visuais. Mais ainda: tudo termina com uma esfuziante coreografia de sapateado. "Imagine-se 'Zatoichi' como um saco, onde se pode meter várias coisas", justifica o cineasta. "Meti tudo o que julguei que podia funcionar. É preciso encontrar o equilíbrio para que não seja um saco demasiado vazio nem demasiado cheio - porque se não, explode."

pop. Em Kitano, já sabíamos, existem duas facetas: a paralisia emocional dos seus filmes de "yakuzas", onde a suspensão e os silêncios denotam uma tensão interior que pode irromper numa violência surda; e o seu lado burlesco, pueril, como quando propõe à criança de "O Verão de Kikujiro" brincar-a-procurar-a-mãe. Desconhece-se qual delas está à nossa frente num sofá de um hotel de luxo parisiense, mas desconfia-se que é a segunda. "Tenho o nível intelectual de uma criança primária", dirá, a meio da entrevista. As duas, enfim - pode-se até convocar mais: o "clown" incontrolável da sua "persona" televisiva - convergem em "Zatoichi": Kitano é admirável na composição da sua personagem, um anti-herói solitário e obstinado, um rosto fechado e um corpo-pedra, mas o filme não lhe pertence verdadeiramente, apesar do título. Pertence à criança irreverente que propõe um jogo e se atreve a sabotá-lo ao mesmo tempo. Brincamos ou quê? Impossível voltar a um género, como o filme de samurais, de uma forma inofensiva: eis "Zatoichi".

Para todos os efeitos, é o "Kill Bill" de Kitano: um manual de sedução do espectador, um delírio pop onde nenhum excesso é poupado. Para todos os efeitos, mas à cautela: à velocidade estonteante de Tarantino, Kitano contrapõe uma dinâmica que combina aceleração e imobilidade. Não se admirem se vos parecer um filme "pesado". "Kill Bill" é uma parada de corpos, "Zatoichi" é uma valsa.

"Neste filme, estive mais atento ao ritmo e ao movimento do que à imagem", diz Kitano. Cego (será mesmo?) no filme, Kitano aproveita para apurar o ouvido. "Zatoichi", uma comédia musical? Há percussões que irrompem subitamente, sequências-interlúdio em que o trabalho dos camponeses se torna coreografia e banda sonora. Estão ali a propósito de nada, ou melhor, para demarcar os vários andamentos do filme - ou, como explica o realizador, "para chegar à cena final", a tal do sapateado apoteótico que, de outro modo, pareceria "demasiado bizarra" (confessamos: continua a parecer). Lembramo-nos de "Dancer in the Dark", de Lars von Trier, mas lembramo-nos, sobretudo, de Björk (e lembramo-nos de Björk a falar de Kitano numa entrevista, há muitos, muitos anos...). Kitano e Björk, a mesma vontade: destruir tudo o que está formatado e criar algo de novo.

"Fiz questão de me demarcar dos filmes de época que actualmente se fazem no Japão e que me parecem imitações de Hollywood ou do cinema de Hong Kong, filmes com imensos efeitos especiais. Quis voltar um pouco à fonte original, a qualquer coisa de mais clássico", diz o realizador, depois de mais uma metáfora culinária. Akira Kurosawa é uma referência assumida de "Zatoichi". O realizador de "Os Sete Samurais", conta-nos, admirava-o porque Takeshi nunca ouvia o que lhe diziam. E chegou mesmo a prenunciar: "Penso que não o posso usar nos meus filmes, mas julgo que daria um bom Zatoichi." Por uma vez, Takeshi ouviu. Ficamos à espera do regresso do desobediente.

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