Vinte anos depois

Por meados da década de 80, a década de todas as ressacas e de todos os "vazios", aparecia em Portugal, vindo do Canadá francófono, um estranho objecto que dava pelo nome, então insólito, de "O Declínio do Império Americano" (1986). Depois de uma estreia, em Lisboa, nos Alfas (de pouco saudosa memória), passava com honras para o Quarteto, na altura ainda a coqueluche da cinefilia lisboeta, e ficava em cartaz por várias semanas, com enchentes e sobretudo direito a polémica acesa entre as elites intelectuais e universitárias. Discutiam-se as condições de investigação e a qualidade de vida das personagens, fechadas num curioso microcosmos, nas fronteiras Norte do Império Americano.

Sob a forma de uma divertida e corrosiva "sitcom", encenavam-se, recorrendo a personagens-tipo (o macho-garanhão, a ninfomaníaca, o homossexual, o "hippie" marginalizado, a mulher dedicada), que se iam complexificando, as pequenas traições e os jogos de sexo cruzados com interrogações à razão de viver num tipo de crise de valores e de mudança de paradigmas. Filme "tagarela" por excelência, "O Declínio do Império Americano" dividia as personagens em dois segmentos narrativos, arrumados por sexos: os homens preparam uma refeição requintada, numa casa de vilegiatura; as mulheres falavam num ginásio, microcosmos por excelência do feminino - desde a experiência limite de "The Women", de George Cukor. Em ambos os casos, o tema passa obsessivamente pelas experiências sexuais, pelos medos e pelas traições que cada um deles cometeu ou deixou cometer.

Quando estreou, o filme encaixava numa apetência para o uso da estrutura em mosaico da "sitcom", enquanto meio de reconhecimento e de questionação do real. Séries como "Os Trintões", por exemplo, viriam a estabelecer modelos que traçavam curiosas pontes entre o cinematográfico e o televisivo, em tempo de admissível contaminação.

Quase vinte anos depois, "O Declínio..." mantém muito do seu fascínio original, sobretudo porque lança sobre questões sérias um olhar sarcástico e iconoclasta. Os quatro homens desenham um irónico quadro de conjunto do mundo académico nas margens idílicas e elegíacas do lago Champlain: Rémy, casado e infiel, professor de História, que foi para a cama com muitas das alunas e com quase todas as amigas do casal; Pierre com uma namorada que conhece em circunstâncias estranhas, num salão de massagens, misto de bordel; Claude, um homossexual algo estereotipado; Alain, um jovem "aprendiz de feiticeiro".

Justifica-se a reposição, na medida em que a estreia de "As Invasões Bárbaras" (2003), do mesmo Arcand, vem proporcionar o reencontro com as mesmas personagens, no momento em que os "bárbaros" entraram em "Roma/Nova Iorque", no dia 11 de Setembro, acontecimento focado de forma fortuita num ecrã de televisão, no ambiente do hospital, em que Rémy agora espera a morte, vítima de um cancro. Para a sua morte quase ritual, convocam-se as personagens vindas do passado, envelhecidas e mais cínicas. Há figuras novas, a do filho de Rémy (com a namorada francesa), representante das novas mentalidades e triunfador das novas tecnologias, bem como a filha de Diana, o seu oposto, "derrotada" pela droga e pela inadequação à mudança dos tempos (Marie-Josée Croze - ver entrevista ao lado). Claude regressa, com o namorado italiano, de um exílio dourado em Roma. Pierre aparece com uma mulherzinha burra e doméstica e os respectivos filhos.

A reunião problematiza a agudização dos conflitos sociais: a Mafia dos sindicatos locais a dominar um mal resolvido serviço de saúde, uma hipócrita política de controlo policial do consumo de drogas, uma igreja Católica em queda livre, obrigada a vender os seus bens ao desbarato e sem soluções para a crise da fé.

uma infinita tristeza.

Como na "sequela", o centro de "As Invasões Bárbaras" passa por um discurso paródico (mais cínico ainda) sobre a economia dos sentimentos, Contesta-se quase tudo, da crença em Deus à crença no amor, tão diferente do que acontece nas letras das canções. E quando as personagens falam, a propósito dos textos de Jacques Brel ("Quand On a que l'Amour" ou "Ne Me Quittes Pas", são os exemplos), ele próprio representativo de um irredutível cepticismo, o "iluminado" tradutor português (sinais dos tempos!) trata a "chanson populaire" por "música pimba".

Da truculência dos diálogos com uma divertida referência, entre muitas outras citações, ao erotismo místico do filme de Genina sobre Santa Maria Goretti, "Céu sobre o Pântano", apropria-se do filme uma infinita tristeza. Na comovente marcha para a morte com a dignidade de quem ainda se sente capaz do riso, revisitamos os locais do antigo "esplendor na relva", assistimos ao pudor dos sentimentos dos que vieram para a grande despedida. É a saída lenta de cena da geração dos "ismos", dos que lêem livros e fazem da cultura frágil (mas ágil) moeda de troca.

A coragem final de defender a eutanásia no contexto problemático de um catolicismo em crise, acrescenta a este olhar desencantado sobre a nossa breve passagem pelo mundo um adicional tom de dignidade ferida pelas circunstâncias. Filme fora das modas, com tempo para pensar e para ser inteligente (e terrivelmente divertido), "As Invasões Bárbaras" tal como o seu parceiro "O Declínio do Império Americano" desmistificam a própria ideia da "sitcom" como suporte de consumo fácil. Sobretudo neles encontramos o espelho da nossa frágil "humanal condição". E não é pouco.

Sugerir correcção
Comentar