Que o acasalamento comece

Depois do gel para o cabelo em "Irmão, Onde Estás?" (2000), a dentadura impecavelmente branca em "Crueldade Intolerável": é assim, arreganhando os dentes como um tubarão, que George Clooney regressa ao cinema de Joel e Ethan Coen - foi o actor, aliás, que os levou a recuperarem o projecto que haviam escrito há oito anos, por encomenda, para os estúdios Universal.

Clooney é Miles Massey, um advogado especializado em direito matrimonial - que é como quem diz: divórcios. Ficam-lhe bem os dentes de tubarão, até porque Massey é um estratega, para quem nenhuma mentira é demasiado descabida para ganhar um processo em tribunal. Em "Crueldade Intolerável", ele será a hipótese mais aproximada de um Cary Grant dos nossos dias: o que lhe falta em estatura para jogar com um corpo desengonçado, compensa com uma artilharia de expressões "blasé", sorrisos automáticos, olhos esbugalhados e, claro, inspecções dentárias insistentes. O filme pertence-lhe quase por inteiro, o que, se não chega para fazer de "Crueldade Intolerável" mais do que um objecto menor dos Coen, serve para torná-lo por vezes irresistível.

O amplo sorriso de tubarão de Massey começa a dissipar-se quando conhece Marylin (Catherine Zeta-Jones), futura ex-mulher de um cliente milionário que irá perder para o advogado em tribunal e decide vingar-se de Massey. "Coup de foudre", Massey reconhece em Marylin uma espécie de alma-gémea amoral ("Presumo que seja carnívora", diz-lhe ele) e o que se segue, num filme onde o casamento e o divórcio são meras operações de conquista e reconquista de fortunas, é uma sucessão de manobras de acasalamento entre Massey e Marylin. O cinismo fica-lhes bem, por isso é pena ver "Crueldade Intolerável" perder a fricção de uma potencial guerra dos sexos para a rotina da comédia romântica. Os irmãos Coen sempre gostaram de brincar aos clássicos e aqui deitam mão à "screwball comedy", sem se esquecerem sequer de recuperar o ritmo desenfreado dos diálogos, mas não passamos da evocação, sem que nunca se instaure a "real thing".

A "screwball comedy", tal como os mestres a fizeram - Hawks, Wilder, Lubitsch -, era um território onde as subtilezas sustentavam forte carga subversiva, onde a provocação era servida como subtexto - veja-se "Bringing Up Baby", "The Major and the Minor", o final de "The Shop Around the Corner" -, desafiando os códigos morais à época. Em "Crueldade Intolerável", é esse vazio que fica à mostra: talvez não tanto porque os Coen, patriarcas do cinema independente americano, entrem aqui na lógica industrial - "este é o filme mais comercial que fizemos", afirmaram eles -, mas porque já não se consegue escapar à sensação de que o seu cinema se rendeu à sua rotina, auto-citações incluídas (à maneira, diga-se, de um Woody Allen). Em "Crueldade Intolerável" rodeiam-se de marcas habituais - personagens "off-beat" (em especial, Billy Bob Thornton), tons negros, a vitalidade do humor -, mas o título do filme restará como um logro. Pensem em Clooney a arreganhar os seus dentes de tubarão - só por isso, o filme já merece uma espreitadela.

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