(Des)ordem militar

E chega um dos filmes mais badalados dos últimos tempos. "Os Polícias do Mundo" tem, de facto, atrás de si uma história curiosa (azarenta, mesmo), já que só agora estreia, depois de ficar dois anos na prateleira. A razão? Ter sido vítima do clima de paranóia e patriotismo fervoroso da América do pós-11 de Setembro, o que motivou acusações de anti-americanismo, pela forma (pouco lisonjeira) como o exército do Tio Sam surge retratado.

Vale a pena, por isso, recapitular os episódios desta novela de controvérsias. Comecemos, então, pelo princípio, quando o ataque às Torres Gémeas fez a Miramax (que havia comprado o filme, exibido no Festival de Toronto, no dia anterior...) aperceber-se da batata quente que tinha entre mãos. As cruzadas de Bush contra Bin Laden, primeiro, e Saddam, depois, levaram a que a estreia nos EUA fosse sendo adiada (acabou por acontecer no final de Julho). Entretanto, o filme até foi exibido no Festival de Sundance, onde ocorreu mais um "caso": num debate pós-projecção, uma mulher resolveu exprimir o seu desagrado perante o que vira, atirando uma garrafa de água (era apenas de plástico...) na direcção do palco, onde se encontravam o realizador Gregor Jordan e uma das estrelas, Anna Paquin.

Acto falhado, mas, logo a seguir, mais achas para a fogueira: o cartaz do filme, com as estrelas da bandeira americana transformadas em cifrões e a legenda "rouba tudo o que puderes roubar", provocou uma chuva de protestos, mas após alguma deliberação (e uns quantos telefonemas a apoiar a escolha), a Miramax optou por não o substituir.

Chegados ao fim (até ver) deste rol de polémicas, e agora que o filme viu a luz do dia, o que fica então? Havia motivos para tanta comoção? Na realidade, não, e até se poderá dizer que o barulho à volta do filme acaba por funcionar contra ele. Quer isto dizer que quem estiver à espera de um objecto pouco "patriótico" (algo a que o título português até dá uma ajuda...) terá de procurar noutro lado, pois, apesar de ser óbvia uma crítica ao intervencionismo americano, aqui em tempo de guerra fria, "Buffalo Soldiers" será tanto anti-americano como anti-outro país qualquer. Ou seja, estamos antes perante uma sátira (agora sim) anti-militarista, em que o que está em causa é o exército enquanto instituição, que o filme vê como um pântano de corrupção moral, assolado por vícios vários e um ambiente de decadência geral. O cenário é uma base militar americana em Estugarda, nas vésperas da queda do Muro, e o anti-herói de serviço o vigarista Elwood (Joaquin Phoenix), secretário que opera no mercado negro alemão - vende de tudo: detergente, armas, drogas... -, nas barbas do incompetente coronel (Ed Harris).

O filme vai acompanhando as peripécias do protagonista, ao mesmo tempo que nos vai mostrando como, em tempo de paz ("uma chatice pegada", segundo Elwood), os soldados, completamente "high", se vão divertindo, entre brincadeiras que terminam com cadáveres e passeios de tanque que destroem tudo à volta... O problema é que é tudo muito inócuo: há um ou dois momentos conseguidos (em especial quando Harris reflecte sobre o falhanço da sua vida e recorda as ilusões da juventude, aperto de mão a JFK incluído), mas o australiano Jordan não parece ter nada de relevante para dizer. E muito menos de novo, principalmente para quem já viu "Mash", "Catch-22" ou "Três Reis"... Falta, sobretudo, delírio.

Além disso, vai-se alternando aleatoriamente de registo, sem que o filme se consiga decidir entre a farsa e a comédia romântica (a partir da entrada em cena de Paquin, "love interest" e filha do inimigo nº1 de Elwood, o sargento psicótico de Scott Glenn), com o final (que, mesmo assim, tenta resgatar as coisas) a levar ainda tudo para terrenos próximos da tragédia.

Sobram a fotografia cuidada de Oliver Stapleton - cujos tons acinzentados captam na perfeição a imagem de uma ex-RFA triste e sem vida, terra de ninguém, sem rei nem roque, e a amoralidade nela reinante - e o trabalho de um notável grupo de actores (entre eles, a esquecida Elizabeth McGovern, do "Era Uma Vez Na América" de Leone), mas não chega...

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