Franceses à deriva

Está um calor infernal e não deve andar muita gente com cabeça para se preocupar com os filmes que estreiam ou que não estreiam nas salas portuguesas. Embora esse seja o seu destino mais provável, seria pena que "Os Náufragos da D17", o primeiro filme de Luc Moullet a estrear-se em Portugal, se evaporasse na indiferença geral.

Moullet é uma figura importante do cinema europeu, esteve no epicentro do terramoto dos "Cahiers du Cinéma" amarelos dos anos 50 e da Nouvelle Vague dos anos 60, e como cineasta tem uma obra de dimensões consideráveis que prolonga a verrina (às vezes iconoclasta, quase sempre originalíssima) que ficou como a sua imagem de marca do tempo em que foi mais jovem dos "jovens turcos" dos "Cahiers...". Para lá disso, convém dizer que "Os Náufragos da D17" é um filme divertido e inteligente, com uma espécie de leveza que permite que se diga sem mentir que até pode ser um bom "filme de Verão", seja lá o que isso for.

Tudo começa duma maneira vagamente desconcertante, com uma voz "off" a explicar-nos as características de uma região de França absolutamente desértica e isolada (Majastres, que tem apenas 18 habitantes e o nome mal escrito no apeadeiro do caminho de ferro), mas no entanto situada a escassos quilómetros da chique Côte d'Azur. Pelo tom ligeiramente empolado de quem parece preparar-se para oferecer um documentário antropológico sobre Majastres, vem-nos à cabeça o "Las Hurdes", o filme de Luis Buñuel sobre um "fim do mundo" semelhante algures em Espanha. O pressentimento revela-se correcto: o nome de Buñuel virá à memória muito mais vezes durante o filme, e em conversa com o Y Luc Moullet confirma tudo o que vem de Buñuel no seu filme (até o título, referência ao romance em que o cineasta hispano-mexicano se baseou para "O Anjo Exterminador", "Los Naufragos de la Calle Providencia", para além de Moullet também falar nos "Náufragos do Autocarro" de John Steinbeck).

o que é isto?

Mas "Os Náufragos da D17" não é um documentário antropológico, ou se o é, é-o na medida em que um filme de Jacques Tati ou de Otar Iosseliani (dois outros nomes que, pelo tom ou pelo estilo, também são de referência pertinente) o podem ser.

Confirmamo-lo pelo que se segue à introdução. O roncar de um carro - um belo Escort RS dos ralis da nossa infância - que acelera por uma estrada de montanha acima, um piloto e um co-piloto a tirarem notas para uma prova a realizar enquanto fazem apostas sobre a guerra do Iraque (a primeira, que baliza o filme através de intertítulos separadores), um japonês parado ao pé dum jipe, o Escort RS a ficar atascado numa vala. Mas, afinal, o que é isto?

"Isto" é um filme onde uma série de personagens citadinos, ou em todo o caso exteriores àquele recôndito universo, vão andar às voltas de um lado para o outro sem conseguirem sair de lá - é "O Anjo Exterminador a céu aberto", como confirma Moullet. Com um tipo de humor sempre servido a seco, como se faltasse o plano da "punchline" ou a deixa para o espectador saber o momento em que se deve rir, "Os Náufragos da D17" é, como alguém lhe chamou, um "tratado sobre o imobilismo e a estagnação", filmado do ponto de vista superior (o topo da montanha) de quem se encontra em boa posição para reduzir tudo e todos às suas mais risíveis proporções.

Moullet fala também de "Die Bergkätze" um velho filme de Lubitsch mudo e ainda alemão (só mesmo Moullet para se vir lembrar de "Die Bergkätze"...), onde diz que descobriu "um uso genial das caches" (a memória do ciclo Lubitsch de há dez anos na Cinemateca faz-nos dar-lhe razão) - uso esse que tentou reactivar em "Os Náufragos...", para além de investir nuns fundidos a negro de timing assaz bizarro, parte da estratégia de negar um "x" a marcar a punchline. Não seria muito difícil encontrar outros pontos de contacto com o filme de Lubitsch - o topo da montanha, onde o oxigénio escasseia, parece dar a volta às cabeças e aos corpos dos homens e sobretudo das mulheres - e o espírito de irrisão é certamente lubitschiano.

e Saddam Hussein?

Mas através dos tipos que se cruzam pelos altos e baixos de Majastres, do piloto de ralis que é o protótipo do canastrão ao destacamento do exército francês premonitoriamente obcecado por encontrar Saddam Hussein, passando pelo casal de montanhistas ultra-ortodoxos para quem pôr um pé num veículo motorizado é a máxima desonra, "Os Náufragos..." também se vai constituindo como aquilo a que Moullet chama uma "crítica tipológica da sociedade francesa", alimentada por um "catálogo de figuras do dia a dia dos franceses". Como para todos os microcosmos, Moullet precisava de "encontrar uma ilha, como as ilhas de Buñuel".

E porquê a guerra de 1991 no Iraque, porquê aquele émulo de Saddam que pôe os militares franceses de joelhos prontos a renderem-se? "Muito simplesmente porque escrevi o argumento nos primeiros dias dessa guerra", responde o realizador. Mas interessava-lhe menos a guerra propriamente dita (os hipersensíveis destas coisas não encontrarão no filme "oposição" nem descobrirão em Moullet um perigoso radical anti-americano) do que o comportamento dos franceses durante ela: "As pessoas comportavam-se de maneira bizarra, faziam apostas sobre quantos iraquianos iam morrer hoje, quantos americanos... Quantas bombas iam ser lançadas, etc". A paródia do exército é mais cruel: "Os militares estavam nos quartéis, chateados que nem perus, e desataram a encontrar pretextos para manobras e estados de alerta, como se a qualquer momento os exércitos de Saddam fossem desembarcar na costa francesa". De qualquer modo as coincidências tenderão a dar demasiada importância a estas referências, apenas mais um condimento do ambiente de irrisão generalizada de todo o filme - mas diz Moullet que "o distribuidor quis aproveitar a coincidência e portanto...". Ah bom, não diga mais nada...

Agora a sério: praia e água à parte, ir ver "Os Náufragos da D17" deve ser a melhor maneira de fugir um bocadinho da frigideira em que se tornou este Verão.

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