Fim de festa

"See it as a dream". Vejam-no como um sonho, pedia, há cerca de um ano, o co-argumentista de "O Amor é Tudo", Mogens Rukov. Sobre o regresso do dinamarquês Thomas Vinterberg já pairava a sombra de filme "difícil": o Danish Film Institute retirou o seu apoio, obrigando a procurar outras fontes de financiamento, e correram rumores de que tinha sido recusado por um dos principais festivais de cinema europeus (esteve em Berlim, este ano, fora de competição).

"See it as a dream", então, depois do pesadelo que revelou Vinterberg: o assombroso "A Festa" (1995), que serviu, a frio e sem redenção possível, a angústia dinamarquesa segundo as regras de um tal Dogma 95, redigido por Vinterberg e Lars von Trier. O filme acabara de recolher o Prémio Especial do Júri em Cannes e já acolhia admiração em todo o mundo (Spielberg afirmou ser um dos melhores filmes que alguma vez vira). Subitamente, Vinterberg estava ao telefone a falar com Ingmar Bergman. "Ele achou que era idiota da minha parte não me ter lançado imediatamente num novo filme. 'Tens sempre de trabalhar num novo projecto antes do anterior estar pronto', disse-me. E estava certo."

O tom sugere-vos arrependimento? Passaram oito anos desde "A Festa" e "O Amor é Tudo" exibe os sintomas de uma megalomania wellesiana (o cineasta-prodígio que recusa o sistema e defende os seus projectos contra todas as adversidades) como que a justificar a espera.

Agora que os últimos filmes dos seus mentores começam a ser mostrados, tornou-se oficial: o Dogma morreu. Tanto "O Amor é Tudo" como "Dogville", de Lars von Trier, surgem, desde logo, como manifestos de radical oposição ao incensado movimento "purificador" que a dupla fundou. Tudo o que era recusado passou a ser permitido: "décors" e estúdios, tripés e luz artificial. Explicações? O esgotamento criativo dentro do colete-de-forças que era o Dogma 95. Vinterberg manifestou mesmo, numa declaração de intenções, que o ponto de partida foi fazer o exacto oposto do que fizera em "A Festa". "'O Amor é Tudo' é a minha tentativa para evitar a repetição, para assumir um novo risco em termos artísticos, para explorar um novo território."

A par da esteticização formal e plástica, a ligar "Dogville" e "O Amor é Tudo" há um fetichismo pela América sobretudo como espaço de vivência do Mal, mas também fascínio pelas suas imagens, de quem conhece a América pelas suas imagens (e Lars von Trier nunca foi à América...).

paranóia. "See it as a dream"... Filme de contornos apocalípticos, "O Amor é Tudo" situa-se num futuro próximo, em Nova Iorque. Nem sinal de "gadgets" futuristas, os indícios de cataclismo cósmico estão à vista: as pessoas colapsam nas ruas e os transeuntes passam por cima dos cadáveres, indiferentes; o planeta sofre de desregulamentos climatéricos e neva em Julho; a lei da gravidade foi suspensa no Uganda e os nativos têm de se prender com cordas para se manterem ligados à terra. Acumulação de medos paranóicos, enfim, com peso simbólico : o bem-intencionado Vinterberg está a tentar alertar-nos para o estado do mundo. "É o nosso relato sobre o mundo, o nosso filme de como os desastres do mundo parecem cada vez mais absurdos." Mogens Rukov, que com Vinterberg assina o argumento (como já acontecera em "A Festa"), resumiu o filme, simplesmente, como "uma peça de ficção científica sobre o presente". Os géneros, essa coisa abominada pelo Dogma, emergem: a ficção científica, sim (uma história sobre clonagem), mas também o "thriller" vagamente hitchcockiano (a fuga de dois amantes, a evocar "Intriga Internacional"). Mas "O Amor é Tudo" é um filme de um tempo em que esses géneros e, em particular, o "thriller" já não podem ser recuperados de forma cândida: restam estilhaços, sugestões, fantasmas, e "O Amor é Tudo" acaba por denunciar uma vontade de "passe-partout" que desorienta e o deixa a vaguear no vazio.

É também o filme de um romantismo exacerbado. Não se disse, diz-se agora: as pessoas morrem de doença no coração, por falta de amor (sim, romântico, mas também confrangedor). A história, enfim: de passagem por Nova Iorque, John (Joaquin Phoenix) tenta que a sua mulher, Elena (Claire Danes), uma "star" ("star" mesmo, como uma "rock star") da patinagem artística assine os papéis de divórcio. Mas Elena é vítima de uma conspiração do seu "manager" (notam a crítica à indústria?), que pretende substituí-la por clones vindos da Polónia, e os dois tentam escapar, com a cumplicidade do irmão de Elena, que os trai (como em "A Festa", não há contemplações para a família, que se faz representar de forma desprezível). Refugiam-se nas paisagens geladas da Polónia onde a natureza lança o seu último acto de vingança pela forma como tem sido tratada.

A juntar a tudo isto, há um ridículo Sean Penn metido num avião, a debitar considerações sobre a desordem do mundo e o amor, aparentemente, para que não restassem dúvidas quanto ao tom moralista do filme. Sim, a câmara ao ombro foi substituída por um esteticismo e um rigor formal (os sucessivos "travellings") por vezes académicos, e o artifício encapotado pelo artifício assumido, mas em termos de moralidade (ou moralismo...), parece-nos, não estamos afinal tão longe assim do Dogma 95. "Estar em contradição com o Dogma é também estar de acordo com ele", referiu Vinterberg a propósito de "O Amor é Tudo".

"See it as a dream". Valeu a pena esperar? Dificilmente. Não.

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