O iconoclasta de Manhattan

No último dia de existência da última cabine telefónica de Nova Iorque, um homem atende o telefone: do outro lado está a voz de um psicopata, escondido algures, que ameaça matar o desonesto publicitário se ele não confessar os seus "pecados". É a premissa deste "thriller" engenhoso, conto moral e sátira aos media que só podia ter saído da imaginação delirante de Larry Cohen, o autor do argumento.

Nasce assim um dos mais improváveis encontros de que há memória, pois se Joel Schumacher, o realizador, é um dos expoentes da mais anódina rotina industrial, Cohen é talvez um dos mais subversivos cineastas americanos, lenda da série B, com uma pequena legião de admiradores (entre os quais, Spielberg, Cameron e Polanski) e uma carreira que se estende para lá das quatro décadas.

Simplificando

: se há alguém que merece o carimbo (tão levianamente utilizado) de "realizador de culto", esse alguém é Larry Cohen. Porque é disso - filmes de culto, dos mais inqualificáveis que o cinema já nos ofereceu - que tem sido feita a sua obra: produções marginais, feitas a correr, em que os orçamentos minúsculos estão nos antípodas do grau de inventividade demonstrado. É um universo bizarro, povoado por bebés assassinos, sobremesas letais ou criaturas ancestrais, em que a ironia surge associada a uma consciência social e os clichés e limites dos géneros são alegremente dinamitados, dando origem a fusões mirabolantes de comédia (negra, claro), terror e FC. Ou seja, "exploitation" também pode ser sinónimo de inteligência.

E com Cohen foi sempre assim: depois de ter passado a década de 60 a escrever para algumas das séries de TV mais famosas da época - "The Defenders", "Branded" ou "O Fugitivo" -, estreou-se como realizador em 1972, com "Bone", peça de câmara, pondo em confronto um casal branco de classe média e o (suposto) assaltante e violador negro que lhes invade a casa, por onde passava a turbulência de uma sociedade em convulsão. Inspirado no dramaturgo inglês Joe Orton (e filmado na casa do próprio Cohen...), houve quem o considerasse uma das estreias mais impressionantes no cinema americano. Seguiram-se-lhe dois dos melhores exemplos de "blaxploitation", "Black Caesar" e "Hell Up in Harlem" (ainda no recente "Badasssss Cinema", o retrato caloroso que Isaac Julien fez desse movimento direccionado para a consciência negra, um crítico se referia a Cohen como "semi-génio"), antes daquele que foi, em 74, o seu maior sucesso, "It's Alive!" (rodado ao mesmo tempo que o filme anterior, o primeiro de segunda a sexta, o segundo durante o fim de semana...). "Cada monstro tem uma mãe que o adora" podia ser o lema desta história de um bebé vampiresco, deformado pela poluição atmosférica, à solta por Nova Iorque, ao som de um dos últimos grandes "scores" de Bernard Herrmann.

É um exemplo perfeito do humor anárquico do realizador, tal como o são outras duas ficções tresloucadas, "God Told Me To" (76) - um ET hermafrodita e albino é confundido com Deus - e "Q" (82), sobre uma serpente azteca voadora que vive no topo do edifício Chrysler. Este trio de clássicos representa talvez o melhor Cohen, mas as ideias demenciais e a visão sarcástica do "american way of life" continuaram em grande estilo. A prová-lo estão sátiras delirantes como "Full Moon High" (82) - uma estrela de futebol americano do liceu transformado em lobisomem -, "The Stuff" (85) - paródia selvagem ao consumismo desenfreado, com uma gelatina viciante que destrói quem a come (ou seja, o monstro não nos persegue, nós é que temos de ir atrás dele e consumi-lo...) -, "Return To Salem's Lot" (87) - os habitantes de uma cidade do Maine são vampiros direitistas combatidos por um Van Helsing moderno interpretado por Sam Fuller - ou "It's Alive 3" (87), alegoria da sida, com motoqueiros e revolucionários cubanos à mistura...

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