Curtas "Mix"

São quatro filmes agrupados sob o mesmo título, "Dinamitem a Terra do Nunca", como tentativa de conquista de outra visibilidade para as curtas-metragens que não a habitual função de complemento a longas. Não deixa de ser paradoxal, por isso, que, para reclamar a autonomia, as curtas se vejam na necessidade de formar um bloco para igualar a duração de uma longa-metragem.

Se a opção não é inédita (curiosamente, hoje estreia outro bloco de quatro curtas, produzidas por Francisco Bravo Ferreira), "Dinamitem a Terra do Nunca" tem a singularidade de não querer ser uma mera soma de dois filmes de Miguel Gomes e dois filmes de Sandro Aguilar, mas assumir-se como objecto único. Dizem os realizadores na sua declaração de intenções: "Não é um filme. Chamámos-lhe 'projecto para quatro filmes', mas talvez pudesse ter ficado 'uma experiência' ou 'uma intervenção'."

Essa "experiência" ou "intervenção" passa pela inclusão de separadores, assinados pela dupla, entre os filmes, e que, embora criando a ilusão de uma continuidade, funcionam menos como elos de ligação e mais como "flashes" de um imaginário que se pode reconhecer nos filmes. São uma espécie de pré-matéria que, sem servirem de "raccord" forçado, estabelecem rimas com os próprios filmes (pode-se reconhecer no episódio sobre o Capitão Gancho - nada mais do que imagens de raio-X das bagagens de aeroporto, onde se reconhece um crocodilo, ao som de um tique-taque - o tom efabulatório de "31", de Miguel Gomes; ou na paisagem lunar de outro separador o vazio que impera em "Remains", de Sandro Aguilar).

Fica a ideia de mistura - dos filmes uns com os outros, mas também com os "interlúdios" - que pode abrir as obras a novas exegeses. Desde logo, porque os separadores não se circunscrevem ao campo do cinema, mas convocam outros universos - a pintura, vídeojogo - como pistas para o território de contaminações que os filmes encerram; criam como que uma predisposição, deixando no espectador a pergunta "que faz isto aqui?"e levando-o a buscar resposta nos filmes.

Por outro lado, o alinhamento proposto - "Kalkitos", de Miguel Gomes, "Corpo e Meio", de Sandro Aguilar, "31", de Gomes, e "Remains", de Aguilar - poderá (quer?) propor aproximações entre a obra dos cineastas. Veja-se como "Kalkitos" e "Corpo e Meio" são feitos do lado do cinema, por assim dizer, mas com abordagens diferentes. No primeiro invoca-se o cinema mudo (as personagens abrem a boca mas não falam, há intertítulos, imagens aceleradas), apenas para pervertê-lo com códigos actuais (a linguagem corporal tem mais a ver com a "anime" japonesa e, no plano formal, o filme exibe uma manipulação visual e sonora próxima do Djing), afirmando a impossibilidade do regresso a uma forma pura de cinema mudo. "Corpo e Meio", por seu turno, inscreve-se num território de depuração - aí, onde o cinema se desembaraça do que não lhe é próprio, para encontrar um equilíbro (uma indiferenciação) entre forma e conteúdo. Obra de fôlego, iludindo a economia da curta, reconhece a existência de um património cinematográfico. Num caso ("Kalkitos") há estilhaços, noutro ("Corpo e Meio") condensação.

A partir daqui, caminha-se para a rarefacção: "31", périplo de um par pelo Estádio Nacional onde se sugere um paralelo entre "O Feiticeiro de Oz" e o 25 de Abril de 1974 (duas utopias), denota uma cristalização das afinidades electivas de Miguel Gomes. O recorrente universo da infância já não oferece mais do que ritualizações de um complexo de Peter Pan, quase a ameaçar o autismo. Rarefacção, também, em "Remains", mas com outro sentido: Aguilar parece fazer de cada novo filme uma reacção ao anterior, e se "Corpo e Meio" estava "cheio" de cinema, "Remains" é uma abstracção - planos de destroços, pós-calamidade - próxima da instalação. É um objecto fulgurante, onde uma coreografia de medusas ao som de Scott Walker (a cantar Brel) vem reconfigurar o vazio anterior e sugerir o embrião de um "Big Bang".

A "terra do nunca" do título, que os realizadores propõem dinamitar, é o quê? Pode ser o cinema tal como (ainda) o conhecemos. É difícil avaliar "Dinamitem a Terra do Nunca" como objecto único: não se esbatem as fronteiras entre o trabalho de Gomes e Aguilar, antes se acentuam os territórios de cada um. Ou seja, cada um dos filmes assegura a sua individualidade e a visão de conjunto permite, sobretudo, estabelecer um discurso sobre a evolução de cada um dos autores. E que não restem dúvidas: estamos perante dois realizadores que se constituíram como autores dentro do formato da curta-metragem.

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