Quando o telefone toca

Convenhamos que Joel Schumacher tem atrás de si um rasto suficientemente grande de filmes odiosos para que se receba cada novo título seu de pé atrás e nariz torcido. Odiosos não apenas por serem maus - há muito mau filme que não é odioso - mas sobretudo por terem maus fígados. Estamo-nos a lembrar de coisas como "Falling Down", "Um Tempo para Matar" ou "8mm", onde Schumacher dava largas a um reaccionarismo puritano e raivoso, como se ele fosse a reencarnação em realizador de cinema do lendário Travis Bickle de "Táxi Driver".

Relativamente hábil a gerir efeitos de espectáculo (por isso lhe couberam em sorte alguns "Batman"), a tendência proto-fascista dos filmes supomos que mais "pessoais" de Schumacher provoca (será um questão de sensibilidades, mas é assim) uma inapelável repulsa: são filmes de sentido único, surdos aos outros e às suas razões, com uma grotesca queda para o mau gosto (daquele plano subjectivo da miúda violada em "Um Tempo para Matar" nunca nos esqueceremos) e para uma demagogia moralista e intolerante de arrepiar os cabelos.

"Cabine Telefónica/Phone Booth" tem todos os ingredientes "ideológicos" do "Schumacher de autor". É moralista, é reaccionário, é intolerante, é puritano, é raivoso, etc., etc. e etc. Por alguma razão, é também menos repulsivo do que a maior parte dos filmes anteriores: talvez por permitir uma maior distância, talvez por possuir um dispositivo narrativo com a força e a originalidade suficientes para aguentarem o fio da navalha, ou talvez por a "mensagem" aparecer aqui de maneira tão óbvia e tão desmascarada que dificilmente se colará à pele do espectador.

filme de tese. Dum ponto de vista puramente narrativo e formal, "Cabine Telefónica" parte dum princípio interessante: há um homem (Colin Farrell, na pele de um arrivista agente da Broadway) que ficará retido numa cabine telefónica por um "sniper" encavalitado numa janela das redondezas que o mantém na mira da sua espingarda e o submete a uma série de torturas psicológicas (e não só).

O filme - para além de uns "inserts" e "flashbacks" a que não resiste - não abandona essa cabine, numa rua próxima de Times Square, durante toda a sua duração, o que lhe dá aquela aparência compacta, no espaço e no tempo, de algumas fórmulas televisivas (não tem muito a ver, mas lembramo-nos de um episódio dos "Contos do Imprevisto", já vão mais de vinte anos, que também se passava por inteiro com um homem preso numa cabine telefónica).

O dispositivo posto em marcha é habilmente gerido por Schumacher, bem apoiado em Colin Farrell - a quem o filme pede um "one man show" - e por secundários da estirpe de Forest Whitaker, esse imenso actor que teve o azar de ser negro, gordo e feio (não é uma tirada racista, apenas a constatação de que para um actor assim não há muitos papéis em Hollywood).

Mas o que é verdadeiramente curioso é observar o avanço da "lógica Schumacher", e o modo como, depois de um início puramente pragmático e "action-orientated", "Cabine Telefónica" se vai transformando em "filme de tese", cometendo até a proeza de transformar o vilão (quem se incomoda por saber pormenores do desenlace antes de ver o filme DEIXE DE LER AQUI), nos planos finais, no herói da fita, verdadeiro salvador da vida desencaminhada da personagem de Colin Farrell (que, pasme-se, até tinha fantasias sexuais com mulheres que não a sua, mas esse é outro problema que o "sniper" o ajudou a resolver).

A lista de ódios do "sniper" (Kiefer Sutherland) é interessante e reveladora: odeia condutas "imorais", despreza prostitutas, chulos e distribuidores de pizzas, desdenha as instituições federais, abomina os egoístas executivos das grandes corporações (até já matou alguns), e vira-se, com a personagem de Colin Farrell, para o "corrupto" universo do "show biz". Em suma, um autêntico catálogo da extrema-direita americana, exibido às claras e apenas mascarado por alguma ironia (vide planos finais, com a revelação do "sniper", filmado como os "cowboys" solitários e justiceiros dos "westerns" antigos).

Nunca chega a ser perturbador, tal é o carácter anedótico da coisa, e tal é a maneira exposta como surgem tanta demagogia e maniqueísmo. O que vale por dizer que, se Schumacher pretendia pôr o espectador a "interrogar-se", então falhou por completo (e já que se falou de Travis Bickle, "Cabine Telefónica" está muito longe de ser um "Taxi Driver" em paralítico, ou mesmo um "Bringing out the Dead"). O que é interessante é ver um filme habilmente espectacular tentar alcançar um patamar de perversidade e insídia que, de tão denunciado, se anula a si próprio. Schumacher pode ser um cineasta fascista, mas falta-lhe alguma escola para poder ser um grande cineasta fascista.

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