Sonhos de autor

Como escreveu um crítico francês, "não deve ser nada fácil estar na pele de Roman Coppola: o único cineasta à face da terra a ter de resolver não só um complexo de Édipo com o génio do pai, mas também a ter de se afirmar como cineasta face à irmã Sofia". Concordamos inteiramente, não deve ser nada fácil ser-se Roman Coppola. E deve ser ainda mais complicado ser-se Roman Coppola e esquecer-se que se o é.

"CQ" é o filme de alguém a tentar ser Coppola, homenageando o nome do pai, ao mesmo tempo que tenta ser apenas Roman. Faz lembrar aquelas histórias dos príncipes que, fartos da vida na corte, tentam misturar-se com a plebe, para descobrirem que é difícil fugir do sangue. Nem sembre acabam bem, veremos o que acontece à história de Roman, ainda mal começada.

Roman, que deve ter crescido rodeado por câmaras, estúdios, filmes e vedetas famosas, escolheu exactamente essas coisas para matéria da sua primeira longa-metragem. "CQ" é uma história divertidamente "retro" sobre a rodagem de um filme de ficcção científica - algures entre a "Barbarella" de Roger Vadim e "Diabolik" de Mario Bava - no final dos anos 60. Coincidência ou não (provavelmente não), "CQ" evoca um período que corresponde ao da afirmação do pai Francis, que até - nos tempos da "fábrica Corman" - assinou algumas coisas ("Dementia 13", por exemplo) mais ou menos aproximáveis do tipo de filmes que "CQ" mais directamente evoca. Mas, em nome do pai ou em seu próprio nome, o grande sonho de "CQ" é a possibilidade de um cinema de autor que se mantenha fiel a uma raiz popular, é a luta pela afirmação de uma perspectiva individual dentro de um esquema de produção mais ou menos standardizado. "CQ" passa-se na Europa, entre Paris (ainda cheia de ecos da Nouvelle Vague, exponenciados por Maio de 68) e Roma, a Roma da Cinecittà (Coppola também sonhou com ela quando criou a Zoetrope), da "Dolce Vita" de Fellini (directamente citada no filme), do produtor Dino de Laurentiis (representado em "CQ" por uma deliciosa caricatura de Giancarlo Giannini).

Esse lado discretamente "kitsch", embevecidamente "retro", é o mais conseguido de "CQ", como se Roman levasse a bom porto a evocação nostálgica de sítios e tempos que ele (nascido em meados dos anos 60) não tem idade para ter conhecido pessoalmente. "CQ" perde algum gás quando se detém nas angústias existenciais do protagonista (um candidato a realizador em crise existencial), acabando por se limitar a reproduzir (mesmo que com muito humor) clichés do "cinema americano de autor", género Soderbergh nos seus piores momentos (sim, "CQ" até tem algumas parecenças com um filme como "Vidas a Nu").

O que volta a ser curioso, mesmo que disso haja uma expressão limitada no filme de Roman (com tendência a esgotar-se num registo demasiado esvoaçante e "clipesco"), é aquela tendência de algum jovem cinema americano contemporâneo (do citado Soderbergh a alguém como Spike Jonze) para tentar reinventar as coordenadas narrativas com que se joga, entre o classicismo e o academismo, o grosso do cinema "mainstream" americano. Vale como sinal de que, nos próximos anos, talvez se venha a passar, em Hollywood e numa acção "colectiva", qualquer coisa de estimulante em torno do último tabu do cinema americano: o cânone narrativo clássico.

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