A ópera do sofrimento

Lars von Trier cresceu com os musicais. Em criança, os filmes de Fred Astaire e Gene Kelly que via na TV fascinavam-no. Eram leves e isso interessava-lhe, "um formato que não exige muito de nós, praticamente nada. É apenas um prazer vê-los". No entanto, não eram "perigosos", não tinham "dor", não o faziam chorar. Até que se cruzou com "West Side Story", muito mais dramático, e descobriu finalmente a diferença "entre opereta e ópera", leveza e seriedade.

A partir desse momento, alimentou o sonho de, um dia, acrescentar ao musical um maior substrato dramático, torná-lo mais numa ópera. Porque, segundo ele, "são as coisas de somenos importância que acontecem nos musicais. Gostaria que os levassem tão a sério como o fazem com a ópera, onde, pelo menos há uns anos, as pessoas choravam mesmo". Por isso, em "Dancer in the Dark", o dinamarquês apresenta-nos Selma, uma emigrante checoslovaca que trabalha numa fábrica algures no interior americano. Corroída por um enorme segredo - vítima de uma doença hereditária, está quase cega -, partiu para os EUA para salvar o filho do mesmo destino. Para tal, é necessário pagar uma dispendiosa operação e é por isso que trabalha incessantemente, acumulando turnos e horas extraordinárias.

Mas este sacrifício parece não comover Von Trier, que inflige, com requintes sádicos, na sua abnegada heroína, uma quantidade de sofrimento quase insuportável: roubada, despedida e condenada à morte, acabará enforcada na prisão. Compreende-se: o realizador avisara que nos queria mostrar como nos musicais também podem acontecer "coisas terríveis", contrariando assim a convicção de Selma, que, ao contrário dele, parece acreditar piamente nos musicais que ambos amam.

Escape para a triste realidade que a rodeia, fantasia com eles em delírios de imaginação sonhadores, interlúdios onírico-musicais onde as explosões de cor permitem aligeirar o negrume constante trazido pelo grão monocromático da fotografia de Robby Müller.

De repente, lembramo-nos do movimento Dogma 95 e percebemos que o filme, apesar de já não corresponder inteiramente ao espartilho dessas regras de "castidade" artística, se enquadra ainda na viragem sofrida na obra do cineasta a partir de meados dos anos 90. Foi nessa altura que a mãe, antes de morrer, lhe revelou quem era o seu verdadeiro pai, o que lançou Von Trier num turbilhão emocional e o fez cortar com o passado, com o ambiente em que cresceu, "em que tudo era permitido excepto sentimentos e religião". Converteu-se ao catolicismo e, inspirado pela espiritualidade recém-descoberta, abandonou o perfeccionismo técnico em favor da procura de uma "pureza" e "honestidade" cinematográficas.

O resultado foi a "trilogia dos corações de ouro" - de que "Dancer in the Dark" fica como capítulo final, após "Ondas de Paixão" (1996) e "Os Idiotas" (1998) -, centrada em mulheres que exibem estados mentais perturbados. A etérea Selma, inesquecível Björk, é a última destas mártires quase santas: incapaz de ouvir a razão, apenas o coração, sacrifica tudo pelo amor incondicional ao filho. Para figuras como ela, de uma inocência e pureza quase infantis, não há lugar num mundo cruel e insensível. É isso que faz de "Dancer in the Dark" um filme belo e emocionante como poucos.

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