Nove meses no inferno

É o próprio realizador, Luís Filipe Rocha, quem, nas notas de produção, aproxima o seu último filme, "A Passagem da Noite", de uma sua obra anterior, "Adeus, Pai" (1996). Tratar-se-ia, assim, de dois filmes unidos pelo mesmo e complementar desejo de olhar para dois momentos cruciais no processo de crescimento e transformação das suas personagens: o miúdo de "Adeus, Pai" operando a passagem do final da infância para a adolescência, a rapariga de "A Passagem da Noite" enfrentando um doloroso processo de entrada na idade adulta.

A aproximação faz sentido, e não deixa de ser uma relativa raridade na obra do realizador. Se exceptuarmos (por razões óbvias) os filmes sobre Jorge de Sena ("Sinais de Vida") ou na sua obra baseados ("Sinais de Fogo"), de 1995, não será muito fácil chegar a uma aproximação directa entre quaisquer dois outros filmes de Luís Filipe Rocha, cineasta para quem, normalmente, um filme se decide nele mesmo, não se prolongando, ou sequer ecoando, noutros. Coisa que nem sequer é desmentida por "A Passagem da Noite", filme cuja orgânica interna é em tudo diversa da de "Adeus, Pai" - para não falar do título que Rocha assinou entre os dois, "Camarate" (2001), logicamente um objecto muito diferente.

animal.

"A Passagem da Noite" é, sobretudo, a história de uma personagem dotada de uma impressionante obstinação: uma miúda de 17 anos que engravida depois de ter sido violada, e numa solidão contra tudo e contra todos consegue atravessar os nove meses subsequentes ("a passagem da noite") sem que ninguém à sua volta se aperceba do facto.

Essa obstinação da personagem é a dimensão mais interessante do filme e o que ele tem de mais notável, mérito da interpretação "animal" de Leonor Seixas. É uma personagem acossada que vive o acossamento sempre para a frente, sem nunca ceder apesar das tentações para o fazer; e que leva essa obstinação a tocar as raias da perversão (o modo como até nega ter sido violada servirá, pelas voltas do argumento, para fazer com que o violador seja acusado de um crime muito mais pesado).

Infelizmente há coisas a mais no filme - excesso de detalhe, excesso de personagens -, coisas que nunca são muito bem resolvidas e que, em última análise, acabam por limitar um filme que tinha um núcleo cheio de potencial. Se ainda há uma justeza de tom no retrato dos pais da rapariga (Maria d'Aires, no papel da mãe, consegue mesmo conferir uma interessante complexidade a uma personagem que muito facilmente podia cair no esteréotipo), há depois uma miríade de personagens secundárias que nunca chegam a ter um corpo sólido e pouco mais fazem do que dispersar o filme, fazê-lo andar para os lados.

Não é, de facto, um filme narrativamente muito económico; perguntamo-nos por exemplo se haveria alguma verdadeira utilidade nas sequências que mostram o violador no "antes" e no "depois" da violação (até porque tudo isso, mais para a frente, volta a ser explicado). Mesmo a personagem do agente da polícia judiciária, que num registo de permanente desafio/apoio é o principal companheiro da rapariga durante o seu calvário, nunca chega a ter uma dimensão à altura do estatuto que, no papel, deveria ter. Assim como é discutível a necessidade da tão palavrosa voz "off" (é o polícia que conta a história) para estruturar a narrativa.

Sem pormos em causa ainda algumas opções pontuais (aquele "raccord" da violação para as iscas, ai!), diríamos apenas que "A Passagem da Noite" é um filme que falha por excesso, ou que falha pela incapacidade de organizar eficazmente a multiplicidade de elementos com que quer lidar. Fica uma personagem forte e, noutro plano, a vontade de esboçar um olhar realista sobre o universo contemporâneo dos adolescentes (sub)urbanos da classe média.

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