Podes tentar, mas não podes fugir a Matrix

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No princípio, era o filme. Agora, são as roupas, os anúncios, o jogo de vídeo, as animações em DVD e... mais um filme (que, por acaso, até são dois). De que falamos? Das diferenças (abismais) entre as circunstâncias que rodearam a estreia de "Matrix" - o épico futurista de Larry e Andy Wachowski -, em 1999, e da sua primeira sequela (em Novembro, seguir-se-á outra), "Matrix Reloaded".

Que diferenças são essas? Enquanto, há quatro anos, o filme original surgiu sem grande pompa nem circunstância - "apenas" mais um potencial candidato a "blockbuster" num Verão que seria, em princípio, dominado pelo primeiro episódio da nova trilogia de "Star Wars", "A Ameaça Fantasma" -, "Matrix Reloaded" chega com a aura de "filme-acontecimento", envolto numa massiva campanha de marketing a que alguns já chamaram "Matrix Overloaded"...

É que para não se saber que o filme estava a chegar era preciso ter passado os últimos seis meses numa galáxia muito, muito distante... Como dizia no tomo original o mentor Morpheus (Laurence Fishburne), "a Matrix está por todo o lado": o estrondoso sucesso comercial do primeiro filme (460 milhões de dólares em receitas globais) levou a que à volta do universo criado pelos irmãos Wachowski fosse desenvolvida uma verdadeira indústria, composta pelos mais diversos produtos. E as duas sequelas - "Reloaded" e "Revolutions", rodadas simultaneamente - são apenas a ponta do icebergue de um rolo compressor cujo objectivo parece ser o de convencer as pessoas de que tudo o resto é secundário perante a necessidade imperiosa de continuar a acompanhar as aventuras do messiânico Neo (Keanu Reeves) e do seu bando de rebeldes...

Primeiro, foram os anúncios. Num deles, uma empregada utiliza as suas habilidades "à la 'Matrix'", desafiando as leis da gravidade, para servir cerveja aos clientes. Noutro, um sósia do agente Smith (Hugo Weaving), a nemésis de Neo, louva uma bebida energética. Mas tudo isto empalidece perante as verdadeiras "pièces de resistance" desta máquina publicitária: "Enter the Matrix", um jogo de computador, e "The Animatrix", DVD que reúne nove animações inspiradas na (futura) trilogia. O primeiro destes produtos foi lançado no mesmo dia que o filme e dá ao jogador a possibilidade de controlar duas figuras secundárias da sequela, Niobe (Jada Pinkett-Smith) e Ghost (Anthony Wong). Mais de dois mil movimentos destes actores foram captados por computador para aumentar o grau de verosimilhança, o que contribuiu para que o jogo se tornasse o mais caro de sempre (o orçamento ronda os 21 milhões de dólares). Escrita pela dupla de cineastas, o jogo desenvolve elementos que ficam por explicar em "Reloaded", com uma hora de cenas adicionais, "prémio" pela passagem dos vários níveis do jogo.

Epifania

Ou seja, quem quiser experimentar todas as dimensões do universo "Matrix" terá de desembolsar mais algumas notas... Algo que, provavelmente, não incomodará os seus inúmeros fiéis, pois o entusiasmo com que se dedicaram a estudar e a decompor o caldeirão de referências composto pelos Wachowski - da Bíblia ao budismo, de William Gibson à BD, passando pelos filmes de acção de Hong Kong ou pela "anime" japonesa - assumiu quase um fervor religioso, com as mais variadas exegeses interpretativas a multiplicarem-se em sites e livros.

"Para mim, que sou agnóstico, ver 'Matrix' numa sala de cinema foi a experiência mais próxima que tive de uma epifania religiosa", diz João Vieira, 23 anos, técnico de informática, um dos muitos que se deixaram seduzir pela noção, introduzida no primeiro filme, de que a realidade dos finais do século XX era afinal uma ficção imposta, em pleno século XXII , aos seres humanos por máquinas intelectualmente superiores. "O mero conceito de que vivemos imersos e apáticos numa realidade virtual controlada por computadores está mais próximo da nossa própria realidade do que podemos imaginar", adianta João.

Mas talvez não esteja apenas aí a raiz do fenómeno cultural "pop" em que "Matrix" se transformou, pois a ideia de realidades alternativas já havia sido explorada anteriormente, por exemplo por Philip K. Dick. Mas ao contrário do que acontece nas ficções do autor de "Blade Runner", em que a descoberta de que há uma entidade superior a controlar a existência de pouco (ou nada) serve aos protagonistas, no filme dos Wachowski esse conhecimento é utilizado por Neo - figura crística e messiânica e anunciado salvador da humanidade - como forma de libertação e de controlo sobre o seu próprio destino, algo que não pode deixar de soar aliciante às gerações mais jovens.

Talvez resida aí muito do fascínio que o filme exerce, o que é corroborado por dois estudantes de 20 anos que falaram ao Y, Ivo Louro e Pedro Ribeiro. Para o primeiro, "Matrix" é "uma verdadeira sinfonia cinematográfica que colonizou toda uma geração de jovens com temáticas que não são mais do que as questões sociais que assombram as suas mentalidades. É um filme de FC, de artes marciais, um 'western spaghetti', uma parábola religiosa, cuja narrativa é servida por um ritmo caótico de tal forma alucinante que chega a confundir as nossas próprias noções de espaço e tempo". Pedro Ribeiro aponta-o como "um filme que satisfaz todo o imaginário do homem moderno, na medida em que aborda temáticas tão pertinentes na sociedade actual como a dependência dos meios de comunicação - como o computador e o telemóvel - ou a dualidade Homem/Máquina". Pedro avança ainda mais dois outros motivos para o sucesso do filme: "Para além do espectáculo fabuloso dos efeitos especiais, a estética ciberpunk e 'cool': heróis vestidos daquela maneira - com vistosos fatos de cabedal, casacos negros compridos e óculos escuros a compor o ramalhete - são figuras com as quais todos nos identificamos".

De qualquer forma, se João, Ivo, Pedro e todos os outros seguidores do culto "Matrix", quiserem mesmo conhecer todos os segredos (pelo menos até à chegada de "Revolutions") da criação tentacular dos Wachowski, não lhes bastará ver "Reloaded" ou jogar "Enter the Matrix". Terão ainda de comprar "The Animatrix", o tal conjunto de nove curtas-metragens animadas em DVD (disponível a partir de 3 de Junho), assinadas por alguns dos mais conceituados realizadores japoneses e americanos de "anime" e explorando temas e fios de enredo menos desenvolvidos nos filmes (poderemos ver, por exemplo, como as máquinas se revoltaram perante os humanos, escravizando-os). E para se ter uma ideia das intrincadas ligações que se estabelecem entre todos estes produtos, bastará referir que entre os extras do DVD se encontra um olhar sobre a criação do jogo de computador que, por seu lado, também remete para uma das animações, "The Final Flight of the Osiris"... Toda esta proliferação de "merchandising" (e que não deixa de ser irónica, depois de o produtor, Joel Silver, ter dito que o filme - ainda por cima assinado pela dupla que pretende salvar o "filme de acção intelectual" - "não pertence ao mundo da 'fast-food'") levanta uma questão: será esta a matriz futura das operações de promoção de um filme?

Gigantismo

Não se sabe ainda, tal como até à estreia mundial de "Reloaded" pouco se sabia sobre o filme. Dos 18 meses de rodagem na Austrália sabe-se, agora, que não foram propriamente idílicos: para além de uma bizarra série de infortúnios - Fishburne torceu o pulso, Moss partiu a perna, Gloria Foster (a actriz que interpreta o Oráculo) morreu -, os actores foram sujeitos a um árduo regime de treinos, sob a supervisão do mestre Yuen Wo-Ping (coreógrafo das cenas de acção de inúmeras produções de Hong Kong, que trabalhou também em "O Tigre e o Dragão"). Também a mente foi exercitada: abundaram as discussões filosóficas, com Reeves a demonstrar uma inesperada predilecção por Derrida...

O manto de secretismo manteve-se nos tempos seguintes, agravado pelo facto de os Wachowski se recusarem a dar entrevistas (aliás, segundo o director de fotografia, Bill Pope, nunca o fizeram: "Os jornalistas é que pensavam que sim, mas eles conseguem falar sem dizer nada") e de os actores se mostrarem relutantes em quebrar o "código" (como alguém já disse, os irmãos não só criaram, mas são, eles próprios, um culto). No entanto, circularam algumas informações, nomeadamente a certeza dada por Silver, devido à maior sofisticação dos efeitos especiais: "As pessoas já não nos vão poder roubar outra vez". É que as acrobacias visuais apresentadas em "Matrix" têm sido copiadas (ou parodiadas) por um sem número de filmes - de "Os Anjos de Charlie" a "Shrek" -, sobretudo, o "bullet time", o visionário processo (com a ajuda de 100 câmaras meticulosamente coordenadas a acompanhar, em círculo, a acção) que permite ver Neo esquivar-se, em câmara lenta, às balas dos adversários.

A equipa liderada por John Gaeta aposta agora não só no regresso dessa técnica, mas também em novos desafios como o "virtual cinema" - que permite atribuir movimento a elementos como o solo e a água - ou o "universal capture", que consiste em colocar cinco câmaras de alta definição sobre um actor, de modo a poder duplicá-lo. Ou centuplicá-lo, como acontece numa das duas sequências mais badaladas, na qual Neo enfrenta, num pátio, 100 réplicas do agente Smith.

E qual é então o outro momento de "tour de force" técnico? Será uma perseguição, em plena auto-estrada (para o efeito, foram construídos cerca de 2,5 quilómetros numa antiga base aérea em Alameda, na Califórnia), que envolve motos, carros e um enorme camião. Por aqui se percebe que, dos mais de 300 milhões que custaram as sequelas (cinco vezes mais do que o orçamento do filme original), cerca de 100 milhões tenham sido apenas para os efeitos especiais.

Face ao gigantismo da produção, seria de esperar que as expectativas pudessem ser demasiado elevadas. Por isso, Silver apressou-se a relembrar que "Reloaded" é apenas metade de um filme, que apenas se completará com "Revolutions" (e de facto, o filme até "termina" com um final em aberto e a legenda "to be concluded"...). De qualquer forma, as primeiras contas afastam quaisquer cenários negativos: "Reloaded" tornou-se o filme com o melhor dia de estreia de sempre, ao facturar 42,5 milhões de dólares nas bilheteiras americanas (batendo o recorde alcançado no Verão passado por "O Homem-Aranha") e só nos quatro dias iniciais já atingiu os 135 milhões. Números que levaram já Joel Silver e a produtora Warner a planear um audacioso lançamento global sincronizado do capítulo final da trilogia, "Revolutions", no dia 5 de Novembro, o que implicará sessões às quatro da manhã em alguns países...

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