Que o jogo comece

"C'est rien. It's only a game", afirma o maléfico (e inacreditável) Merovigian (Lambert Wilson). "Et voilá", entre o bla-bla-bla infinito, a essência de "Matrix Reloaded" fica condensada numa frase: "It's only a game." Não será, certamente, uma surpresa verificar que o segundo filme da trilogia se assemelha mais do que nunca a um jogo de vídeo.

Começa no título: chama-se "Reloaded" como um recarregar de baterias de um jogo ou a versão "upgraded" de um programa de computador. Nada muda, tudo se transforma: a sensação é a de se assistir a uma variação do filme original, tendo como único programa a ultra-sofisticação dos meios, como se "Matrix" procurasse capitalizar as suas imagens, ultrapassar-se a si próprio em êxtase visual, para justificar o fenónemo e os sucedâneos copistas. É um filme auto-rejubilatório, comprazendo-se no exibicionismo do seu estilo pioneiro - quando, nas cenas iniciais, ressurge o célebre "bullet time", um efeito de suspensão que permite dar a ver a trajectória das balas, é como uma piscadela de olho, do género "vejam como estamos mais actualizados" (e não é isso mesmo - "You've been upgraded" - que Neo/Keanu Reeves diz ao seu arqui-inimigo Agent Smith/Hugo Weaving, no seu primeiro reencontro?).

Mas se "Matrix Reloaded" se parece com um jogo de vídeo, mais do que o original - que era um filme com actores a fazerem aquilo que só parecia possível num jogo de vídeo ou numa "anime" japonesa -, é porque dilui ainda mais as fronteiras entre cinema e efeitos gerados por computador, numa espécie de simbiose indiferenciada entre humano e virtual, como na cena de combate entre Neo e uma multidão de agentes Smith num pátio - progressivamente, os corpos vão dando lugar a bonecos, sob o ritmo dos vídeojogos. O "Matrix" original propunha um jogo atmosférico, com o herói relutante (Neo) a ser confrontado com a escolha (tomar o comprimido azul ou o vermelho, etc) para aceder aos vários níveis. Em "Matrix Reloaded" está-se definitivamente dentro do jogo - dentro da Matrix, ou fora dela, dependendo do ponto de vista, sem a possibilidade de contraponto com uma existência mundana, humana (sem a hipótese de "game over", como Morpheus propunha, ao apresentar os comprimidos a Neo).

Os actores respondem agora a automatismos (quase todos parecem contaminados pelo tom monocórdico e mecânico da voz do Agent Smith), como se tentassem superar os seus vestígios humanos, num filme onde o humano parece ser uma fraqueza - só assim se explica que haja uma celebração dos corpos, espécie de "rave" tribal, depois do anúncio do ataque das máquinas ao reduto dos rebeldes humanos, Zion.

Não há propriamente um argumento em "Reloaded", mas este cavalga atrás de uma lógica de jogo baseada na passagem de um nível a outro, mergulhando sempre mais fundo e esquecendo o que ficou para trás. O filme constitui-se, assim, como uma sequência de blocos de acção, com uma densidade hipnótica próxima da abstracção, em que as cenas que os separam funcionam como uma descompressão da overdose visual, mais do que como narração (os diálogos, aliás, estão mais crípticos e fechados dentro da pseudo-mitologia que os irmãos Wachowski pretendem criar). Por falar em descompressão: a tonalidade transita facilmente entre a gravidade e a ligeireza, de contornos auto-irrisórios (gags mais ou menos conseguidos, Neo convertido em Super-Homem), como se "Matrix" também pretendesse responder aos "pastiches" paródicos que, entretanto, lhe sucederam, numa lógica "se não os podes vencer, junta-te a eles".

E aqui se chega à pedra-de-toque de "Matrix": com a sua ambição de filme-síntese, filme-tudo, num "cocktail" de kung-fu, BD, misticismo zen, ciberpunk e paranóia orwelliana, "Reloaded" aproxima-se, de forma mais evidente, de uma "familia", convocando para o seu ponto de fusão referências a "Star Wars", "Terminator" ou "Aliens". O que até parece fazer algum sentido num filme sob o signo da multiplicação "ad infinitum", pejado de duplos, clones e gémeos nefastos. O que fica é um filtro, uma superfície que parece conter tudo e não contém (quase) nada. Mas assim se vê a força de "Matrix": não faltará quem lhe aponte a infinita possibilidade de leituras. E, no entanto, "it's only a game."

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