Doidos por armas

"Porque a América tem uma História de violência, desde os índios e cowboys, etc…" É assim, como quem proclama uma fatalidade, que os americanos explicam porque é que todos os anos o número de mortes provocadas por armas de fogo no seu país é superior ao do Canadá, França, Alemanha, Grã-Bretanha e Japão – todos somados.

É também a pergunta que obcecou um realizador americano, Michael Moore, sobretudo depois do massacre no liceu de Columbine, em 1999: Porquê?Foi o ponto de partida para "Bowling for Columbine", "case-study" provocador e implacável sobre a obsessão dos americanos pelas armas, e filme ferozmente político que num mundo ainda mal refeito do 11 de Setembro veio agitar as águas paradas do politicamente correcto.

Tornou-se um fenómeno. Questão de "timing": foi o primeiro documentário em 46 anos a ser aceite na competição do Festival de Cannes, no ano passado – não tanto por ser um documentário, mas porque era um filme político de um americano "gauchiste" (de esquerda) num momento em que a Frente Nacional de Jean-Marie LePen tinha passado à segunda volta nas eleições francesas. E porque os festivais de cinema por vezes também gostam de emitir os seus "statements" políticos, "Bowling for Columbine" saiu de Cannes com o Prémio Especial do Júri, depois de uma ovação prolongada (20 minutos) quando o filme foi exibido. De então para cá, tem enchido salas a um ritmo invejável para um documentário, e, há duas semanas, conquistou o Óscar de melhor documentário. Questão de "timing", ainda: "Bowling for Columbine" toca numa ferida que, de há um ano para cá, só se tem aberto mais. É nesse contexto que chega a Portugal e é impossível desligá-lo da conjuntura geopolítica, em função da qual, para o bem e para o mal, será avaliado. "Coup de foudre" ou "coup" de fúria: entre partidários e detractores, entre pró e anti-americanos ("pero que los hay, los hay"), quem não se quiser barricar em nenhum dos lados até pode encontrar em "Bowling for Columbine" um bom agitador de ideias. É também por ser cáustico e mal-comportado que o é.

populista.

Afinal, não é só por questões políticas que se pode "embirrar" com o filme. Começa pela forma: é menos um documentário do que um plano de ataque. É o método de Moore, a quem já chamaram "Chomsky com gags": colocar-se no centro dos seus filmes, inquiridor incómodo mascarado de ingénuo bem-intencionado, com uma câmara por arma. Depois, é só apontá-la aos alvos preferenciais: multinacionais, políticos, media. É assim desde o primeiro documentário, "Roger & Me" (1989), em que Moore perseguia o presidente da General Motors, Roger Smith, para confrontá-lo com a decisão de fechar a produção na sua terra natal e mudá-la para o México por motivos de rentabilização. A questão é que, para Moore, denúncia equivale a "show": os seus filmes não se inscrevem na linha de uma tradição documental, mas na escola da TV americana e do "great entertainment". Nos piores momentos, "Bowling for Columbine" não anda longe de um "reality-show" sensacionalista.

A América pode estar na mira, mas este é um filme que se rege pelas leis de um cinema de espectáculo. Um filme americano, portanto. Contraditório? "De todo. Só vejo uma contradição quando se chega a 300 pessoas já convencidas. Um discurso radical não ambiciona mudar a sociedade? Neste caso, não será melhor chegar às massas?", afirmava à revista francesa "Inrockuptibles" em Outubro passado. "O facto de ter conseguido atingir um grande público constitui uma verdadeira vitória para qualquer pessoa de esquerda."

Talvez, mas a esquerda tem tido dificuldades em lidar com o populismo de Moore. E o próprio reconhece que as principais críticas que lhe são dirigidas vêm da esquerda. Recentemente, uma publicação liberal de Nova Iorque afirmava: "Só gostávamos que houvesse uma alternativa a Michael Moore. O nosso lado não consegue arranjar ninguém menos grosseiro, menos cáustico, menos tosco?"

E quando um jornalista britânico lhe sugere que não é um "traditional leftist" porque parece dar-se bem com "os maníacos conservadores", é um desbocado e foi um "tarado por armas" quando era jovem, responde: "O que é que quer dizer? Isso é um comentário sobre a origem de classe? Eu venho da classe trabalhadora, portanto, o meu instinto, a minha tendência devia ser de direita?"

wonderful world.

Se as estratégias de vingador solitário de Moore podem suscitar arrepios, pelo menos em "Bowling for Columbine", o seu protagonismo tem uma reserva de honestidade. O realizador não é um observador exterior, mas alguém que faz parte da psicose de um país. E assim entramos, com Moore a revisitar o filme da infância: "Esta foi a minha primeira arma. Mal conseguia esperar para sair e atirar sobre os vizinhos. Bons velhos tempos..."

Antes, em voz "off", anunciara: "Era uma manhã como outra qualquer na América. O presidente bombardeou outro país cujo nome não sabíamos pronunciar. Numa pequena vila do Colorado, dois rapazes foram jogar bowling às seis da manhã. Sim, foi um dia típico nos Estados Unidos da América." É lançado o mote para a tese de Moore: a de que a paranoia colectiva pelas armas e pela violência é o reflexo de um processo tentacular que começa na atitude belicista do governo americano. Uma das pedras-de-toque, na escalada galopante que é a montagem de imagens de arquivo, é o momento em que se mostram cenas de tiroteio, seguidas de uma cronologia de golpes e intervenções dos EUA na Guatemala, Vietname, Chile, El Salvador – de 1953 até 11 de Setembro de 2001 –, ao som de "What a wonderful world". A música é um contraponto irónico, mas Moore é inequívoco.

No dia em que dois adolescentes, Eric Harris e Dylan Klebold, entraram no liceu de Columbine armados e mataram 13 pessoas também se registou o maior bombardeamento americano no Kosovo. Para o realizador, há uma ligação entre os dois acontecimentos. No fim, Harris e Klebold voltaram as armas para si e dispararam. Por inferência, Moore sugere que o 11 de Setembro representou o mesmo tipo de acto suicidário. O seu método de argumentação é o choque. Quando as imagens dos dois aviões colidindo contra o World Trade Center surgem, há uma legenda que é como um murro no estômago: "Bin Laden usa o que aprendeu com a CIA para matar três mil pessoas."

Há demagogia e simplismo a mais – e Moore, seguramente, é alguém que concebe o documentário menos como uma forma de interrogar do que como uma construção impositiva de explicações –, e há por vezes mais autenticidade nas hesitações do realizador/entrevistador (quando o pai de uma das vítimas de Columbine lhe pergunta "Porque é que os americanos são tão diferentes?", não consegue mais do que devolver a pergunta) do que nas suas ilações.

Mas "Bowling for Columbine" não deixa de ser um objecto sedutor, até pela sua ambiciosa dissecação de todos os contornos do problema – históricos (o tal passado de violência), humanos (o sentimento de revolta e defesa contra um governo desfasado dos seus cidadãos), económicos (a pobreza, a proximidade entre o liceu de Columbine e a Lockheed Martin, o maior fabricante mundial de armamento) e sociológicos (a cobertura dominante da criminalidade pelos media). E quando insistem em apontar a culpa à violência dos filmes americanos ou ao "heavy metal" de Marilyn Manson, Moore viaja até ao Canadá, onde há sete milhões de armas em 10 milhões de lares, e onde os adolescentes vêem os mesmos filmes e têm os mesmos vídeojogos. Porquê?, pergunta.

"A base da minha proposta é que a razão da violência e do número de mortes não são as armas, somos nós. Há um problema no nosso comportamento clectivo, na nossa mentalidade. É um adversário mais difícil de circunscrever, pelo que se tornou mais árduo fazer o filme", explicou à "Inrockuptibles".

No fim, "Bowling for Columbine" é menos um filme sobre a obsessão dos americanos pelas armas do que sobre a obsessão americana pelo medo. Medo do próximo (quando Moore pergunta a um americano como é que imagina alguém que possa virar uma arma contra ele, a resposta é: "Você, ela, o ‘cameraman’, qualquer pessoa"), medo do outro (a inevitabilidade do suspeito ser negro sempre que há um crime), e depois do 11 de Setembro, medo de tudo. É um filme de terror: o medo alimenta-se a si próprio. Mas, em última instância, não é um filme só sobre a América: o medo não é um exclusivo americano e o 11 de Setembro não veio só agudizar as relações humanas nos EUA. O medo, a desconfiança do próximo, do outro, está entre nós – e os EUA não foram os únicos a reforçar as medidas de segurança depois do 11 de Setembro.

Para voltar ao filme: Michael Moore cresceu no Michigan, "um paraíso para quem gosta de armas", que é também a terra natal do presidente da National Riffle Association (NRA), "lobby" que defende o direito de porte de arma, invocando a Segunda Emenda da Constituição americana. Moore é membro da NRA, que acaba por ser o seu passaporte para um golpe baixo: entrevistar o actor na sua mansão de Beverly Hills, a pretexto da questão das armas. Heston presidiu a um comício da NRA não muito longe de Columbine, dias depois do tiroteio de 20 de Abril de 99 e voltou a fazê-lo em Flint, Michigan, depois de um rapaz negro de seis anos disparar sobre uma menina branca da mesma idade na escola primária. O motivo da visita de Moore a Heston é só um: levar o actor a pedir desculpas ao povo de Flint por ter aparecido pouco depois da ocorrência. Heston sai mal do confronto – quando o realizador lhe pergunta porque é que cerca de 11 mil pessoas morrem na América todos os anos por causa das armas, afirma que, "provavelmente, a América tem uma maior mistura étnica do que outros países" —, mas Moore não sai melhor: como o actor se recusa a prosseguir a conversa, pede-lhe que olhe a fotografia da vítima e deixa-a no chão, junto à casa, antes de sair, cabisbaixo.

Sentimentalismos à parte, este filme é também o confronto de um homem que se diz "mais patriota que Bush" com o seu próprio país – e com os sentimentos contraditórios, de amor-ódio, que isso lhe suscita. E que promete não dar tréguas: Moore já anunciou que o seu próximo projecto vai prolongar a reflexão levada a cabo em "Bowling...": "Vou dissecar a maneira como Bush se serve do 11 de Setembro em função dos seus próprios interesses."

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