A pintora e a vida

O "biopic", como género, já conheceu dias mais prósperos, até porque o discurso biográfico apresenta problemas complexos que não se compadecem, muitas vezes, com os interesses da indústria.

Talvez por isso, a primeira questão que deve levantar-se a propósito de "Frida", biografia muito pouco convencional de Frida Khalo, passa pelo entusiasmo posto no erguer do projecto e pelo empenhamento pessoal tanto da realizadora, Julie Taymor, quanto da estrela, Salma Hayek: existe no produto final uma alegria de filmar e de animar os quadros da "pintora de bigode", que ultrapassa o simples efeito e o "kitsch" invocado por um universo rico de implicações.

Julie Taymor começou a sua carreira cinematográfica com um objecto estranhíssimo, que dá pelo nome de "Titus", adaptação desmesurada da mais "gore" das tragédias de Shakespeare, "Titus Andronicus", com uma energia transbordante e uma capacidade rara para superar os limites de uma visualidade tresloucada e provocatória. "Frida" partilha deste risco de apostar no politicamente incorrecto, reunindo um imaginário de esquerda (os muralistas mexicanos, o exílio de Trotsky, o amor livre, a bissexualidade) em torno de uma abstracção de Frida Kahlo, do marido, o "comunista" Diego Rivera, e de um olhar deslumbrado, embora evitando cuidadosamente o folclórico, sobre uma época de crise e de procura de valores "revolucionários".

Um grande filme? Definitivamente não. E, no entanto, contextualiza de forma produtiva o "romance de Frida", a sua pintura invulgar, as suas aventuras com, entre outras, a diva crioula da Paris do pós-guerra de 1914-18, Josephine Baker, o confronto com o "establishment", na figura de Nelson Rockefeller (interpretado por Edward Norton). Aliás, uma das coisas mais curiosas neste filme frágil passa pela construção de uma ficção "familiar", em que actores famosos vêm fazer o seu número, sobretudo por respeito pelo projecto ou pela personalidade retratada: Antonio Banderas encarna o muralista David Alfaro Siqueiros, Geoffrey Rush compõe um Trotsky pouco credível, Ashley Judd empresta o seu carisma à fotógrafa Tina Modotti, a grande Chavela Vargas (ligada biograficamente a Frida e citada na banda sonora), tem um impressionante "cameo" na figura alegórica da morte.

O melhor do filme passa também por essa capacidade de integração: mais do que propor uma biografia oficial, investe-se na prospecção, na possibilidade de ilustrar um mundo em cores e imagens com um trabalho notável, mesmo que discutível, do "designer", Felipe Fernandez del Paso, animando os delírios da pintora, algo entre o realismo mágico e o surrealismo mais descabelado. A caracterização, aliás premiada com um Óscar, consegue maravilhas na transformação de Salma Hayek e a banda sonora, também oscarizada, não só dá o necessário tom de "mexicanidade", como funciona enquanto forte suporte dramático.

Os valores plásticos e musicais de "Frida", a sublinharem a visualidade explosiva de Julie Taymor, não chegam, porém, para colmatar deficiências graves a nível do argumento, construído sobre fogachos fragmentados de uma heroína sem espessura necessária: a "vida" de Frida Kahlo aparece demasiado como pretexto para quadros vivos, espartilhada numa série de episódios soltos, mesmo quando de forte impacte.

Entre uma biografia que erguesse uma grande figura trágica e uma pintura mimética de costumes e de motivos, o filme optou sempre pela segunda: nessa escolha reside o seu maior trunfo e também a sua mais radical limitação.

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