O monstro e o monstro

Não há bela sem senão, mas há monstros sem bela: Roberto Benigni tem uma vasta corte de fãs, um inacreditável Óscar de melhor actor num filme desequilibrado mas interessante, "A Vida é Bela", e um capital comercial (alicerçado com duvidosos sucessos em "O Monstro" ou "Johnny Palito") a fazer com que a Miramax apostasse, inclusive, numa versão americana para alargar o mercado possível.

Depois disto, quando se vê o resultado final, não se acredita: "Pinóquio" é de uma indigência confrangedora, Benigni, grita, pula, esbraceja numa histeria total que cansa e chega a enfurecer. Demasiado confuso e pretensioso para apelar a um público infantil e demasiado pateta para funcionar para uma faixa etária adulta, o filme coloca-se num limbo de total desinteresse: os cenários são feios e de uma artificialidade sem imaginação; o guarda-roupa, com destaque para a roupinha do boneco protagonista, de uma pobreza franciscana; a realização do próprio Benigni é de uma condescendência sem limites para com o Benigni-actor, deixado à solta para todos os disparates e excessos.

O início contém a única ideia interessante de cinema: um tronco que cai percorre as ruas, derrubando tudo na sua frente, até esbarrar na porta de Gepeto. Quando se transforma em Benigni (e percebemos que o actor é um "cepo"), acaba-se o nosso descanso: a voz em falsete penetra-nos os tímpanos e persegue-nos até ao fim desta penosa viagem.

Se a primeira cena, de uma carruagem puxada por ratinhos, com uma fada pirosinha e um cocheiro míope, tinha alguma graça, ao iluminar o cenário artificial, para que se pudesse vislumbrar o caminho, a sequência da Commedia dell’Arte, em ambiciosa contextualização dos tiques cómicos de Benigni, não poderia resultar mais ridícula, com um inverosímil ogre lacrimejante e os trejeitos do protagonista a encherem o ecrã.

Quando entramos no espaço sagrado da casa da fada, temos a vã esperança de que algo melhore, mas depressa percebemos que nada se altera substancialmente. Lembramo-nos então dos belíssimos interiores (também artesanais, mas de uma eficácia impressionante) do clássico dos clássicos, sempre que falamos da fortuna cinematográfica do conto de fadas, "A Bela e o Monstro" de Jean Cocteau.

Aliás, "Pinóquio" esbarra na nossa memória fílmica do conto de fadas, povoada não só por Cocteau, ou pelo seu "discípulo" Jacques Demy no fabuloso "Peau d’Âne", por exemplo, mas também pelos sapatos vermelhos de Dorothy em "O Feiticeiro de Oz", para já não mencionar o incontornável património da Disney, com o inolvidável "Pinóquio" da década de 40 a moldar o imaginário de várias gerações.

Passar o boneco de Carlo Collodi da animação para imagem real constitui, portanto, um risco que acaba por se revelar fatal: o episódio da baleia é de um ridículo atroz, a transformação dos homens (e bonecos) em burros desafia qualquer manual do mau-gosto institucionalizado. Nada resulta neste emaranhado desconexo de cenas descosidas, neste registo autocomplacente de uma actor que se julga um génio e nos invade com o seu cabotinismo omnipresente.

Para quem for fã de Benigni, aconselha-se, apesar de tudo, a revisão de "A Vida é Bela". Para os "pinoquianos", que tal um novo olhar sobre o clássico da Disney, com um boneco a fazer (lindamente) de boneco e um inesquecível grilo cantante?

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