O fim do mundo, outra vez

Danny Boyle volta a fazer equipa com o escritor e argumentista Alex Garland para, depois de "A Praia", trazer à luz do dia outro conto apocalíptico. Desta vez o apocalipse é mais literal, ou é mesmo o Apocalipse, bíblico e genuíno.

Um vírus fulminante no modo como se transmite e arrasador nos efeitos que provoca deu cabo de praticamente toda a população do Reino Unido em menos de um fósforo. Resta, literalmente, meia-dúzia de indivíduos saudáveis, condenados a movimentarem-se à procura de uma esperança de socorro - parece que ("parece", às personagens) os efeitos do vírus devastaram sobretudo a Grã-Bretanha, sacrificada e isolada numa espécie de quarentena para que o resto do mundo se salve.

Acrescente-se a isto o pormenor de o vírus induzir, aos contaminados, um comportamento vampiresco, e ficam expostos os principais ingredientes de "28 Dias Depois" (já agora, o filme chama-se assim porque o protagonista ficou em coma depois de uma queda de bicicleta e quando acordou, 28 dias depois, já a infecção desgraçara o mundo que ele conhecia).

São ingredientes de género, ou ingredientes que pelo menos puxam o filme para dentro de um território narrativo com alguma tradição. Obviamente, o tema do "fim do mundo" é um clássico da ficção científica pelo menos desde os anos 50, a guerra fria e o medo da bomba. O tema do vírus destrutivo e fulminante é possivelmente o grande medo colectivo contemporâneo (resistiremos ao da pneumonia asiática?), e por isso largamente explorado na última década - algumas vezes, como acontece aqui, associado ao "filme de vampiros", género propenso à metaforização como poucos (até já cansa, convenhamos). Neste cruzamento de géneros e modelos temáticos, "28 Dias Depois" não nada longe de uma lógica de funcionamento próxima, por exemplo, de algo a que podíamos chamar o "western de FC" (como os "Fantasmas de Marte" de John Carpenter), ou, na parte final no quartel, o "filme de guerra de FC" (como, digamos, os "Aliens" de James Cameron).

Gastou-se um parágrafo em "catalogação", mas a verdade é que pouco mais há no filme do que elementos para se oferecerem em catálogo. Se Boyle retira proveito, com alguma eficácia dramática, da fotogenia de uma Londres deserta e abandonada ("Londres, ano Zero"? Neo-realismo de "FC"?), tudo tende, assim como em "A Praia", para a reiteração banal de uma banalíssima e repetidíssima mensagem "anti-rousseauiana": sim, o homem é intrinsecamente mau; sim, uma vez dissolvido o verniz civilizacional e suspensas as normas sociais, a bestialidade substitui-se à humanidade; sim, há esperança que num tal cenário pelo menos alguns de nós conservem uma dignidade com qualquer coisa de transcendente. Como filme de acção, "28 Dias Depois" é sofrível; como filme de tese, vai-se tornando tão mais insuportável quanto mais próximo do fim.

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