Era uma vez um país, Moçambique

Sonho. É uma palavra que se ouve repetidamente em "Kuxa Kanema", documentário de Margarida Cardoso. Sonho de um país e sonho de um cinema.

O título é também o nome de um jornal cinematográfico semanal, a principal (e mais popular) produção do Instituto Nacional de Cinema de Moçambique (INC), cuja criação, em 1975, foi a primeira acção cultural da então emergente República Popular de Moçambique. O seu objectivo era "filmar a imagem do povo e devolvê-la ao povo". Para tal, as unidades de Cinema Móvel (uma série de viaturas) divulgavam, por todo o país, iniciativas, projectos, acções e intenções, contornando, por via da imagem, a elevada taxa de analfabetismo e possibilitando a circulação de notícias entre as diversas povoações. Kuxa Kanema quer ainda dizer "o nascimento do cinema".

E é precisamente isso que o filme de Margarida Cardoso mostra: o nascimento, mas também a vida e a morte, de um ideal de cinema, que se queria "para o povo", em paralelo com o percurso de um ideal de país, que se queria diferente dos outros. Segundo a autora, a vontade (necessidade?) de fazer este documentário nasceu de uma visita às ruínas do INC, de que hoje, após um incêndio em 1991, já não resta nada. No entanto, num anexo sobrevive ainda o arquivo, onde as imagens de um passado recente (já) esquecido apodrecem lentamente. "Quando conheci o INC e vi aquele material todo, achei que era uma óptima metáfora do país, que tinha aqueles sonhos todos que foram sendo aniquilados a pouco e pouco até morrerem", contou a realizadora ao Y.

Cruzando de forma hábil os excertos de inúmeras produções do INC com os testemunhos das pessoas – realizadores, argumentistas, operadores de câmara – que as "fabricaram", o filme é a crónica, apaixonante, dos turbulentos anos da revolução. Do deslumbramento da descoberta de algo novo e belo que caracterizaram a época que se seguiu à proclamação da independência (as primeiras imagens que vemos são as do dia 25 de Junho de 1975, quando uma bandeira é retirada e outra se ergue, orgulhosamente) ao desencanto e miséria trazidos pelo alastrar de uma longa guerra civil. Da grande esperança à grande desilusão. Passa por aqui o sentimento de algo que ficou por cumprir: "Íamos mudar o mundo", diz um dos entrevistados, recordando os tempos iniciais de partilha de ideias e aprendizagem mútua, quando era o cinema – um cinema improvisado, pouco mais do que amador – que trazia, a um povo que aprendia finalmente a controlar o seu destino, os ideais da revolução e o significado de um país livre e de palavras como "independência", "nação", "unidade". É, por isso, um filme triste.

Quanto a perspectivas comerciais, Margarida acha "difícil" que o filme venha a estrear, prevendo que, além da exibição na Cinemateca – hoje, às 21h30 – e nas TV (além da RTP, a ARTE francesa e a RTBF belga) para as quais foi produzido, tenha apenas direito a alguma "apresentação especial" em França e na Bélgica. De qualquer forma, já foi projectado em Moçambique, experiência que classificou de "muito interessante, pois ressuscitou-se a polémica daqueles filmes e foi discutido um pouco do passado recente da FRELIMO e das suas acções mais controversas, que nunca foram debatidas a fundo. O Primeiro Ministro e o Ministro da Cultura tiveram mesmo de prometer que iam preservar o arquivo." Além disso, o documentário deu já origem a um ciclo de filmes históricos. "Pelo menos, o filme serviu para isso", desabafa a autora de "Natal 71", em cujas obras "a ideia de passado está sempre presente".

"É importante conhecer o passado", afirma, "para conseguirmos relativizar o presente em termos históricos, para que o olhemos e encaremos com responsabilidade, porque tudo o que fazemos agora já aconteceu". Em "Kuxa Kanema" interessava-lhe "relembrar o passado (pensá-lo) e mostrar esse passado (as imagens) para pôr em causa o presente".A realizadora espera ainda que o filme sirva para "nos reconciliarmos" com a experiência da colonização: "Para mim, foi uma terapia, faz bem saber o que foram esses primeiros anos de independência". Segundo ela, "as guerras civis nas ex-colónias - que, devido ao contexto histórico, tinham de acontecer - servem como uma espécie de alibi, ‘nós fomos maus, mas eles foram piores’, e isso tem de acabar".

De todo este projecto ressalta ainda a força de uma figura carismática, Samora Machel. "É impossível não sentir fascínio por ele", confessa Margarida. "Era um homem incrível, uma personagem incrível, e não temos noção do que ele foi e representava", assegura, revelando que "originalmente, o filme tinha uma hora e meia, por culpa das imagens incríveis que havia de Machel. Foi-me muito difícil retirá-las".

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