Fugir para lado nenhum

É um filme terrífico, é um filme sobre o terror. "O Círculo" revela a coreografia desesperada de oito mulheres numa cidade, Teerão. Não há saída. Ser mulher, no Irão, é uma fatalidade.

Uma mulher dá à luz. É uma menina. A família do marido esperava um rapaz. Teme-se o pior.

Uma rapariga vê uma pintura de Van Gogh e compra um bilhete de regresso a casa. "Nem quero pensar no que aconteceria se o teu paraíso não existisse", diz-lhe a amiga. Ela não chegará a partir para confirmá-lo.

Uma ex-presidiária é expulsa de casa pelos irmãos e tenta abortar, em vão.

Uma mãe abandona a filha nas ruas. É a terceira vez que o faz.

Uma prostituta acende um cigarro.

O círculo em que se movem as mulheres do filme do iraniano Jafar Panahi fica completo: a portinhola que se fechara no início, abre-se agora. Onde estamos? Na prisão. Ou numa cidade, Teerão. Ou numa sociedade patriarcal onde o homicídio de duas mulheres é equivalente ao de um homem - a pena é a mesma.

"Um dia encontrei uma pequena notícia num jornal: 'Mulher comete suicídio depois de matar as duas filhas'. Não havia nada sobre as razões por detrás do crime ou do suicídio. Provavelmente, o jornal não via qualquer necessidade, já que em muitas comunidades as mulheres são privadas de tudo. A sua liberdade é limitada, ao ponto de parecer que estão numa grande prisão. Isto não é válido apenas para uma classe de mulheres em particular, mas para todas. Como se cada mulher pudesse substituir outra num círculo, tornando-as toda na mesma." Foi o ponto de partida para Panahi filmar a sua terceira longa-metragem, "O Círculo", visão panorâmica sobre a situação das mulheres no Irão. Como "Dez", de Abbas Kiarostami.

Subitamente, pode parecer que o cinema iraniano está a olhar para o mesmo lado, tornando visível o que uma sociedade condenou à não-existência, a mulher. Nunca antes o cinema de Panahi ou o de Kiarostami se tinham confrontado com a questão. Coincidências de exibição: se se quiser entrar na história do ovo e da galinha, "O Círculo", que agora se estreia, data de 2000, é anterior ao filme de Kiarostami, de quem Panahi foi assistente de realização em "Através das Oliveiras". O discípulo a comandar o mestre?

Há coincidências: ambos são feitos do lado das mulheres, elegendo o quotidiano como matéria-prima e desmultiplicando-se em sequências que normalmente correspondem à entrada de uma nova "personagem". Os dois filmes são habitados por vários rostos femininos que, no fundo, podiam ser a mesma mulher - ligam-nas a culpa, o medo, a repressão. Nos dois, enfim, o título reflecte a própria estrutura do filme - "Dez", porque é constituído por dez sequências ou "takes", "O Círculo", porque nele, o movimento é circular, delimitando um espaço para o qual não há saída. Plano fixo no primeiro, plano-sequência no segundo, é pela simplicidade do dispositivo e recusa de efeitos que se deixam carregar de sentido(s). Sem limite. São filmes do tamanho da vida.

coreografia do desespero.

Se "Dez" pode ser visto como uma experiência de Kiarostami fora do seu universo habitual (será por isso que tantos dizem preferir outros filmes do cineasta, por se parecer pouco, ou menos, com a marca Kiarostami?), "O Círculo" assinala a individualização de um autor que no filme de estreia, "O Balão Branco" (1995), ainda evidenciava demasiado a influência do mestre (o argumento, aliás, era de Kiarostami). Se há traços comuns que tendem a enformar o cinema iraniano numa imagem de marca - o protagonismo dado às crianças, a predominância de cenários rurais -, então "O Círculo" será um caso à parte. Uma surpresa.

Nunca um filme iraniano mostrara uma cidade assim, Teerão, como espaço de voragem existencial, como se as ruas tivessem inscritas uma fatalidade (o que vagamente, mas só vagamente, o aproximará do "film noir"). É aí que se cruzam e descruzam as mulheres de "O Círculo", sempre em ponto de fuga. Fogem para onde? Não sabemos. A câmara, móvel, limita-se a segui-las, sem as aprisionar, até o seu movimento coincidir com o de outra, silhuetas negras com o "chador" azul escuro esvoaçante. Com os seus planos-sequência e rotações (cuja circularidade reproduz, por vezes, no "décor" de umas escadas), a câmara de Panahi filma a coreografia do desespero.

É a proposta "subversiva" de "O Círculo", que venceu o palmarés do Festival de Veneza em 2000: denunciar a injustiça de um sistema moral a partir de dentro, ajustando-se e não opondo-se a ele - aqui não há mulheres "emancipadas" como a protagonista de "Dez", são as excluídas da sociedade, figuras marginais como se saídas do neo-realismo italiano (e Pari, a ex-presidiária, grávida e solteira, que tenta abortar, traz à memória Anna Magnani, com o mesmo rosto tragicómico). Sem redenção. Há uma outra presença obsessiva nessa cidade das mulheres: polícias e guardiões da Lei. É um filme terrífico, é um filme sobre o terror. Onde um mero gesto, como fumar um cigarro, pode significar demasiada liberdade. "Sem um homem, não podes ir a lado nenhum". É o círculo vicioso das oito mulheres de Panahi.

Tanto quanto se sabe, "O Círculo" continua sem ser exibido no país de origem - depois de a autorização para a rodagem ter demorado nove meses a ser dada e de terem aconselhado Panahi a fazer um filme semelhante a "O Balão Branco". Diz o realizador que todo o filme é uma resposta à pergunta que ocorre fazer na primeira sequência, a do nascimento: Porque é que é um problema ter uma menina? Porque, no Irão, ser mulher é cumprir uma fatalidade.

Não por acaso, se a câmara raramente se fixa, fá-lo, justamente, para revelar a claustrofobia dos espaços femininos. Como um "guichet" de cinema, onde Pari e uma ex-companheira de cela se encontram. Como a portinhola de uma enfermaria, como a portinhola de uma prisão. Chegámos ao fim? Ou é o princípio? As mulheres estão todas lá. Apetece fugir, não há maneira de fugir a um filme como "O Círculo".

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