TVI: Falta de profissionalismo ditou fim do "canal de inspiração cristã"

Há dez anos chegava aos ecrãs a TVI. O projecto inicial de uma televisão "alternativa, familiar, modesta", ligada à Rádio Renascença, não vingou. O perfil da estação é hoje profundamente diferente e alguns dos que a sonharam dizem que pouco a vêem. Mas discute a liderança com a SIC, devido à orientação que José Eduardo Moniz lhe imprimiu nos últimos anos.

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Sob a gestão da Media Capital, Moniz começou uma nova fase na TVI David Clifford/PÚBLICO

Falta de parcerias estratégicas, de vocação, de profissionalismo e de dinheiro. É esta a radiografia dos males que levaram à morte do "canal de inspiração cristã", feita ao PÚBLICO por alguns dos então responsáveis. Dez anos depois, não se revêem na TVI, que lhe herdou o nome e multiplicou audiências, mesmo que lhe reconheçam mérito enquanto empresa. A maior parte diz que nem sequer é espectadora do canal.

Quando ganhou a licença, o projecto já perdera a denominação de "canal da Igreja" e passara a ser apenas uma "TV de inspiração cristã", lembrou ao PÚBLICO o gerente-executivo da RR, Magalhães Crespo, que na altura cedeu o seu lugar de administrador-executivo da TVI a Roberto Carneiro, embora se tenha mantido ligado à televisão durante alguns anos devido à participação da rádio.

"O projecto inicial era o de uma TV alternativa, familiar, modesta e intimamente ligada à RR. Trabalharíamos em conjunto, com jornalistas e comentadores comuns, mas isso nunca saiu do papel", reconhece Magalhães Crespo. "Talvez por a RR ser uma rádio pouco dinâmica, tradicionalista, talvez familiar demais", ironiza.

A equipa que o substituiu - liderada por Roberto Carneiro - "optou por um projecto concorrencial, de igual para igual, com a outra privada", que também acabou "por não resultar financeiramente", afirma o responsável pela RR.

Luís Marinho foi director-adjunto de informação durante o primeiro ano de vida da estação, mas acabou por sair da TVI por não concordar com "o caminho que o canal levava". Diz que teria saído mais cedo se não fossem as pessoas que levou consigo para o canal. Ainda hoje é muito crítico em relação ao projecto em que participou: "O início foi muito atribulado. As pessoas que tomaram conta do projecto não sabiam o que era fazer televisão, como eu próprio não sabia."

Sem exuberância nem "glamour"

"A Igreja andou uma década [os anos 80] a querer um canal, e não a preparar um canal", critica Marinho, actual director de informação da RDP. O projecto tinha "demasiado amadorismo" e a Igreja "não percebeu que não tinha vocação para fazer TV, que era algo altamente profissionalizado". Era impossível "competir com a exuberância, a cor e o 'glamour' da SIC quando se tinha, muitas vezes, cenários muito pobres".

O PÚBLICO tentou falar com o padre António Rego, que foi director de informação nos primeiros tempos da estação e ainda hoje se mantém ligado ao canal, nomeadamente com o programa 8º Dia, ao domingo. António Rego não se quis pronunciar sobre o assunto. Contactado pelo PÚBLICO, Roberto Carneiro, também se recusou a fazer quaisquer comentários.

Quem nunca alinhou pela defesa de um "canal da igreja" foi o padre Vítor Melícias, que esteve ligado à Quatro por dirigir a União das Misericórdias, um dos investidores, e pela rubrica diária que apresentou, Encontros. "Preferia que incluísse aquilo que agora se designa sociedade civil, com entidades religiosas, universidades, sindicatos e outras instituições", afirma Vítor Melícias, para quem as instituições que participavam no capital "deviam ter sido mais produtoras e participantes na antena do que apenas pagadoras".

O projecto era, segundo Melícias, "utópico" e os dirigentes "não tinham, claramente, capacidade para o conduzir". A essa limitação juntou-se "a pressão das audiências e os vícios dos profissionais".

Reviravolta foi "tarde demais"

Os problemas financeiros são também apontados por Ribeiro e Castro, que participou no projecto durante toda a fase de "inspiração cristã" - foi director, responsável pelos serviços jurídicos, director de informação e administrador. "A experiência demonstrou que só era possível chegar a um patamar aceitável de audiências com dinheiro e parcerias estratégicas, como a da SIC com a Globo", diz o actual eurodeputado do PP, recordando que a parceria com a espanhola Antena 3 na programação - concurso Jogo do Ganso, série Farmácia de Serviço, por exemplo - e na informação "foi por água abaixo com o escândalo do banco Banesto e Mário Conde precisamente quando o projecto de aliança e um importante aumento de capital estavam a ser ultimados". A debilidade financeira e estratégica "ditou o fim da Quatro".

Mas Ribeiro e Castro não encontra na TVI dessa altura só defeitos: "No primeiro ano e pouco batemo-nos bem com a SIC. Houve tempos em que as curvas de audiências eram paralelas. Mas depois faltou o capital para nos mantermos na competição." Em meados de 1994 foi preciso "mudar o perfil da grelha; quis-se uma estação de baixo custo, substituiu-se a ficção nacional por informação, filmes e séries estrangeiras (são mais baratas), e desporto". Recorda que foi um "ano gratificante". "Mas foi tarde demais. A derrapagem financeira estava incontrolável e havia problemas de entendimento internos." Seguiu-se o período "negro", com as assembleias de credores e a venda.

Sobre a TVI, Ribeiro e Castro é nostálgico: "Fica-nos sempre alguma coisa de ligação à estação, mesmo quando esta não segue a nossa linha de opção. Não faria o alinhamento do actual noticiário assim, por exemplo."

Magalhães Crespo, que deixou o canal quando a Media Capital tomou conta dele, confessa "alguma mágoa" quando passeia pela televisão e vê aquilo em que a "sua" TVI se transformou "com as corridas desenfreadas às audiências e aos 'fait-divers'." "É completamente diferente daquilo que justificou o esforço de muita gente na sua criação [Magalhães Crespo investiu mais de uma década no projecto, mesmo antes da concessão da licença sem, assegura, 'ganhar um centavo']." O padre Melícias, que prefere os canais internacionais, acrescenta: "É uma TV como qualquer outra, não é transmissora de valores humanos".

Luís Marinho elogia o percurso empresarial da nova TVI. "É uma televisão comercial; definiu um público-alvo e trabalha o produto, tanto a programação como a informação, com uma grande coerência tendo em conta o tipo de público que escolheu." E esta receita "é quase uma muralha intransponível pela concorrência", conclui.

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